Ela é ultra │ Maria Clara Dunck (GO)

quinta-feira, abril 13, 2017



Pilar Bu faz parte da turma dos novos escritores do Brasil. Obviamente por ser jovem, já que tem apenas 33 anos. Mas também porque, assim como muitos escritores de hoje, Pilar Bu se lançou poeta na internet, por meio de blogs e redes sociais – uma realidade que se mostra cada vez mais comum, pois a virtualidade se apresenta como um espaço onde as pessoas se publicam e lançam a si mesmas à criação literária, sem depender de um crivo institucionalizado.

No dia 15 de abril, em Goiânia, com o lançamento de seu primeiro livro, Ultraviolenta (Kotter Editorial), além de se publicar, ela é também publicada. E este é um ato significativo, principalmente por se tratar de uma mulher escrevendo poesia. Isso porque, no recorte de gênero, nas duas acepções da palavra que fazem sentido dentro do mercado editorial, mulher e poesia são negligenciadas.

“Uma mulher escrever é um ato político”, como bem disse a escritora gaúcha Luisa Geisler. Lendo Pilar Bu, percebe-se que seu eu-lírico feminino enfrenta hegemonias resistindo com violência. Isso pode ser bastante dolorido, pois à medida que a mulher em Ultraviolenta se movimenta em direção a algum lugar – podendo esse lugar ser dentro dela mesma – o corpo invariavelmente se expõe e se mutila, num trânsito que pode ser uma escolha ou uma imposição: “estou voando para.../ me partir no chão/ [...] porque eu gostava mais de mim/ quando me entendia menos”.

Para conhecer mais a obra e a poeta, confira a seguir a entrevista realizada por Maria Clara Dunk.

Maria Clara - Qual é a sua trajetória na literatura? Quando começou a escrever e por quê?

Pilar - Comecei a escrever muito nova. Não me lembro quando. Como sou de uma família de sambistas, minha mãe é uma devoradora de livros, acho que todo esse processo foi muito natural pra mim. A música, o ritmo, a rima, mesmo que eu não curta muito rimar, sabe (risos), foram acontecendo. Inicialmente como curiosidade, depois como processo criativo, trabalhando as palavras mesmo.
Comecei a escrever porque percebi que era o melhor jeito de me relacionar com o mundo. De me expressar. Acho que comecei a escrever porque simplesmente não podia não escrever. O jeito que me expresso melhor é pela poesia. No contato e no afeto da possibilidade de me ligar a alguém, que está do outro lado do papel, que eu não conheço, mas que posso conhecer melhor assim, pelas palavras.

Maria Clara - Ultraviolenta é seu primeiro livro. Qual foi o processo de escrita e publicação?

Pilar - Ultraviolenta é minha primeira experiência de publicação por editora. Quase uma catarse. Era um desejo já latente desde 2009. Eu tinha pensado em outros projetos de livro, mas nenhum me pareceu tão interessante, redondinho e delicioso como Ultraviolenta. Nele há coisas antigas, de 2006, de 2009, mas basicamente foi concebido, escrito e pensado em 2013.
Num momento muito desesperador da minha vida. Num momento de esgotamento emocional profundo. De vontade de desistir. Achava, na época, que eu escrevia pra não morrer. O Ultraviolenta me ensinou que eu escrevo pra viver, pra pegar tudo isso e beber de uma vez.
Eu vi que o que mais me doía era ser tão agredida por ser mulher. Eu me sentia e era constantemente aviltada na rua, no transporte público, no trabalho. Simplesmente por ser mulher, e que essas dores eram partilhadas e aprofundadas por tantas outras mulheres.
Aí eu fui sentar e escrever, abrir meus poros pro mundo, pra essas vozes, pra essas mulheres. Pra isso tudo que tava tão mais tão latente no meu coração, na minha pele, nos meus ossos.
O processo de publicação começou em 2015, eu passei no Clipe (curso na Casa das Rosas) com o projeto do livro, as pessoas começaram a me olhar diferente. Parece que eu estava sendo legitimada, sabe. Eu não sabia muito bem o que fazer, onde procurar, aí a minha amiga Priscila Merizzio começou a me incentivar para encontrar uma editora. Ela foi muito importante nesse processo. De lá pra cá foi uma montanha russa de emoções, até que assinei contrato, em 2016, com a Kotter Editorial. Eles adoraram o projeto e foram muito carinhosos.
Ultraviolenta é um livro sobre recomeços, um livro sobre troca de pele, sobre não caber no próprio corpo e redescobrir ele. Um livro violento sobre afeto, sobre empatia, sobre possibilidades.

Maria Clara - A poesia no livro é visceral. Há sangue, hematomas, mordidas, tatuagens, furos, cortes. Por que falar do corpo é importante?

Pilar - Porque é um espaço interditado. E toda interdição deve ser rompida, quebrada, desvelada. Eu sempre gostei muito de falar das sensações do corpo. O corpo fala, mesmo quando mudo, em silêncio.
O corpo é o espaço mais próprio do que somos nós e mesmo assim é tão negligenciado.
Eu demorei muito pra aceitar meu corpo, assim, cheio de falhas. Celebrar as lutas que travamos no nosso corpo, ressignificar esse campo de batalhas é também parte do processo de aceitação dele.
Eu, assim como a maioria das mulheres, me sentia impelida a não compreender o meu próprio corpo, a me pasteurizar, a me encaixar em padrões que não nos pertence.
Não aceitar ter os braços dobrados e colocados dentro de uma caixinha também é um jeito de rechaçar  essas questões, de resistir.
A violência dos poemas está no despertencimento e na não aceitação dele.
Às vezes é preciso trocar tudo, tudo, o que tá dentro e ao nosso redor, para poder voltar a compreender o nosso corpo e consequentemente quem nós somos e o nosso lugar no mundo.

Maria Clara - Quem é a mulher ultraviolenta? Por que o prazer da violência – resgatando as origens do termo – se tornou tema?

Pilar - A mulher ultraviolenta é a mulher que não se cala, é a mulher que busca se compreender, que não quer dar conta do que esperam dela, que está em busca de se colocar no mundo. É a mulher que quer expor o que a agride. Sou eu, você, a vizinha, a irmã, a amiga, somos muitas. Somos tantas. E seremos mais. Ainda bem!
Por isso, tornar a violência o tema do livro foi o jeito que eu encontrei pra conseguir lidar diariamente com ela e pra mostrar que outras mulheres também lidam com a violência.
Foi dizer, romper os silêncios que ela provocava em mim e no meu corpo, e por empatia no corpo de outras mulheres, pra mostrar que é isso que possibilita o confronto, o enfrentamento e a superação das muitas violências. Desde as que tomam a alma até as que nos levam a formar constelações no braço.
Eu precisava descobrir um jeito de viver e responder a tudo que me acontecia e acontecia com as mulheres a minha volta, compreender o que nos une, e esse jeito foi escrevendo o Ultraviolenta.
É claro que muita coisa aconteceu de lá pra cá, muita mulher escreveu, deu voz a essas questões, mas a gente encontra o jeito de tangenciar o que nos incomoda, nos machuca, nos dilacera. E espero que possamos fazer isso ainda mais.

Maria Clara - A capa de Ultraviolenta foi confeccionada nas cores preta e verde. Geralmente livro de poesia de autoria feminina recebe um tratamento gráfico bem diferente. Essa escolha foi proposital?

Pilar - Sim. Sem dúvida. Desde o início eu sabia que queria uma capa preta. Queria também uma cobra, porque adoro a ideia do oroboros. O recomeço, engolir-se, regurgitar o próprio corpo. Depois, já na época de pensar concretamente nisso, em 2015, lembrei da música da Pitty, “Serpente”, e digo que ela é a trilha sonora do meu caos, da minha violência. O verde é a minha cor favorita. Não sei por quê. Preto e verde são cores que me representam, me alegram a alma.
A capa foi realmente um caso à parte, um capítulo longo na história desse processo. Lutei muito por essa capa, lutei para que ela existisse assim.
Por ser mulher, acho que as pessoas estranham uma representação tão destoante do que se julga tradicional para uma menina, uma mulher, mas eu sinceramente acredito que estereótipos tão aí pra isso mesmo: serem quebrados! E espero continuar quebrando muitos.
Por fim, depois de muito confabular sobre o assunto, eu percebi que essa capa tinha que ser do tamanho do meu sonho, do tamanho do Ultraviolenta, do tamanho de tudo que vinha sendo construído e de todas as lutas que travei.
Aí eu pedi pro meu companheiro, o Vinicius Lousa, fazer a capa. Não podia ter ficado mais perfeita. Ele me conhece como ninguém, acompanhou esse sonho, e tudo que precisava está ali: a troca de pele representada por essas partículas que saem da cobra; a cobra gráfica maravilhosa, que nos permite enxergar esses prismas e possibilidades; o preto que é a cor mais linda; o verde que ilumina tudo. A ideia de violência é coroada com a frase há muito tempo escolhida para figurar as primeiras páginas do livro: “poemas para picar e comer com as mãos”.
E daí o amor é tanto por esse projeto gráfico que a Kotter Editorial amou também e embarcou nessa maravilha.
Eu queria mesmo que a capa fosse algo que as pessoas olhassem e dissessem: esse livro é pra ser deglutido, devorado ou eu serei devorado por ele. (Risos)

Maria Clara - E por que escrever poesia e não outro gênero literário?

Pilar - Caramba essa é uma pergunta que vivo me fazendo. Poesia dilacera, arrasa, passa engolindo tudo. Não é um processo fácil escrever poemas. Direto me pego pensando que adoraria ser uma grande contista, mas ainda não escrevo contos satisfatórios, dos quais eu goste! (risos)
Acredito que eu tenha escolhido a poesia por causa do samba, lembra dele? Pelo ritmo, pela cadência, pela possibilidade de em poucos versos dar um murro no espaço, amassar papéis, deixar latente o mundo a minha volta. A poesia é essa explosão que acelera todos os músculos do corpo e dispara as terminações nervosas.
A poesia é o perigo, e eu gosto de correr perigo.

Maria Clara - Há planos para um próximo livro?

Pilar - Há sim. Na verdade, meu próximo livro está quase pronto. Já estou estruturando os poemas, pensando no formato, em que disposição quero colocá-los. Gostaria de explorar novas possibilidades de coisas que eu não fiz no Ultraviolenta, de descobrir outros caminhos. Gosto desse desafio que a poesia me permite e que eu sinto que me motiva, me impulsiona.
Acho que o novo livro tá ainda mais violento (risos) e como eu tenho o privilégio de ter um capista disponível full time pra mim, eu tô abusando e ele já tá até pensando em como será a nova capa.
Só não conto o nome por que, sei lá, tem essa coisa da energia do universo! (Risos). Então, deixa de segredo.
O fato é, ainda vai ter sangue no carpete e os poemas estão bem do jeito que eu gosto, como vidro: translúcidos, frios, duros e cortantes.

SERVIÇO
Lançamento do livro Ultraviolenta, da poeta Pilar Bu
Dia: 15/04, sábado
Horário: 18h
Local: Complexo Estúdio & Pub
Endereço: Rua 7, n. 489, Centro de Goiânia
Programação: sarau e debate com a presença de escritoras locais, além de autógrafos, serviço de bar, refeição e música
Entrada gratuita


Maria Clara Dunck é escritora, doutoranda em Literatura e mediadora do Leia Mulheres Goiânia.


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