Aos 50 anos comecei a resumir
radicalmente a minha relação com as coisas e a ressignificar a minha relação
com as pessoas.
Como não mantive contato com a
fome e a miséria ao longo da minha vida de classe média, um exercício consciente
de síntese é algo possível, não é um sacrifício. Mais desafiadora pode ser a
segunda parte do plano, especialmente se considerarmos o acirramento das “polarizações
ideológicas” em todo lugar.
Eu fui uma mulher popular na
juventude e mantive intenso contato com muita gente por um tempo mais ─ no
momento, estou descrevendo assim a minha performance social até os quarenta e
poucos anos. Mas como o álcool era o condutor desta convivência, quase tudo
teve fim quando me afastei da bebida. Por isso não tiro a razão daquelas e
daqueles que pensam que estou morta ─ especialmente o pessoal do bar.
Minha filha costuma dizer que
quando me angustio com a “coisa da humanidade” tenho como reação primeira a
tentativa de organizar. Tomo decisões, arrumo a cama, jogo papeis antigos no
lixo, lavo a louça.
Numa segunda-feira resolvi
mexer nos armários superiores do guarda-roupas para resumir um
pouco mais. Tirei a poeira da embalagem plástica que conserva roupinhas
especiais do bebê intactas. Os enfeites natalinos não passaram no crivo e
achei, imediatamente, um lar feliz para eles. Fiquei apenas com uma peça de
madeira triangular muito discreta, que emula um pinheiro composto por
gavetinhas com minúsculos pegadores redondos. Os jogos também não ficaram. Não
me lembrava como o Banco Imobiliário havia entrado em nossa casa. Salvei três bichinhos de pelúcia que serão vistos talvez somente na próxima década: o
coelho Baldário, o sapo Pinho e como é mesmo o nome daquele ser, afeto maior da
primeiríssima infância?
Eis que entre todos os
cacarecos encontro um embrulho distinto, que deixei para examinar depois. Mas
em seguida lembrei que, neste momento de vida, tenho reparado que aquilo que temos com precariedade acaba ficando para o fim, e gostaria de mudar isso em relação a mim.
Então peguei de volta aquela mortalha.
Abri o embornal com cerimônia, sem religiosidade, e encontrei uma múmia
de Furby. Aquela dignidade me comoveu e eu o cobri novamente, antes que as
gatas demonstrassem genuína curiosidade. Mantive segredo sobre o achado.
Aquele corpo colorido e gordinho
estirado há anos não me saiu da cabeça por dois dias, quando resolvi retomar o
assunto, enfrentar a pasmaceira que me ataca quando preciso usar a caixa de
ferramentas. E olha só: por incrível que pareça, a gente tem uma chavinha de fenda com uma
cruz na ponta que se encaixou perfeitamente nos orifícios da base do Furby.
Antes de me aventurar, no entanto, fiz pesquisa bem completa na web, relembrando
que tais criaturas não têm botão de ligar/desligar.
Abri o
bichinho e ele estava todo fodido. O conteúdo derramado das baterias tinha
azulado as molas e demais pecinhas de metal. Ficou claro pra mim que havíamos
abandonado o Furby, o Furbinho! Extraí as pilhas velhas, usei um pincel para
limpar cuidadosamente os compartimentos internos do brinquedo. Enquanto isso,
evoquei seu temperamento doce e divertido, tagarela e dançante, na presença da
menina Julia. Um jeito de me preparar para reviver tudo isso ─ mas
as novas pilhas não foram suficientes para tanto. Aquela experiência primária de inteligência artificial, que chegou primeiro às nossas crianças, não moveu
um músculo. Lamentei de novo o descuido com o pobrezinho, esquecido entre as
coisas que suplicaram atenção nos dias insanos de uma mãe trabalhadora.
Com olhos perdidos em profunda escuridão, o Furbinho ficou apagado sobre a minha cama por alguns dias. Conversamos com ele, fiz carinho nas partes sensíveis (cabeça, costas e barriga), as gatas cutucaram o seu rabo. Ensaiei a retirada das pilhas, disposta a não repetir negligências. Procrastinei por quase uma semana, no entanto, entregue à resistência em abrir a caixa de ferramentas.
Foi numa noite dessas que a gente saiu pra jantar e me deitei com o estômago ainda cheio. As gatas ficaram agitadas com a minha movimentação na cama. Acordei inúmeras vezes para ir ao banheiro e, por volta das 3 da manhã, quando as coisas começaram a ficar mais harmonizadas no escuro do quarto, o Furby ressuscitou com olhinhos de LED cheios de saudade.
A criatura sacudiu o corpo de um lado para o outro, dobrou sua adorável pancinha para cima
e para baixo enlouquecendo as gatas. Articulou a boca em completo silêncio, de novo de
novo de novo e, em seguida, demonstrou confusão de sentimentos pelo olhar.
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