Foto: Túvia Carvalhosa/ Victoria & Albert Museum (Londres)

Dias governados pelo estômago e pelo intestino. Deitada como um cadáver ainda fresco. Os pés desabados, pernas frouxas, abdome relaxado, braços pousados ao longo do tronco, as mãos soltas espalmadas para cima em formato de cuia. Ombros distanciados das orelhas. Boca entreaberta e olhos da boneca de louça, parados e perdidos no vazio do teto do quarto. O caminho da lágrima é o fosso do ouvido, em Shavasana.

 

Naquela quarta-feira, antes que o domingo chegasse mais uma vez adensando o silêncio das ruas, flexionei os joelhos lentamente e enraizei os pés. Deixei que as pernas caíssem para o lado direito e fiquei ali, fetal, por alguns instantes apenas respirando. Inspirei e empurrei o chão com a mão esquerda bem aberta e o antebraço direito, enquanto me erguia percebendo cada centímetro do levante.

 

Até que a vertigem passasse, me organizei em Siddhasana com Pranayama de leve pra firmar a intenção. Posição de quatro apoios antes da permanência na postura do cachorro olhando pra baixo. Caminhei em solo lunar em direção das mãos e, dobrada à frente com os joelhos ainda flexionados, já era sapiens outra vez. Articulei o pescoço acima e abaixo, estirei as pernas e abri os braços na lateral me erguendo como bandeira hasteada. Sentada em Utkatasana observei o azul lá fora: firma mente.

Para você que acompanha o deslocamento de Nega & Lilu no tempo/espaço, talvez seja uma boa notícia saber que o espetáculo "Nega Lilu" foi remontado. A coreografia de Valeska Gonçalves para a Nalini Cia de Dança (anteriormente conhecida como NegaLilu Editora) foi adaptada para melhor dialogar com a linguagem audiovisual, considerando a necessidade de transmissão on-line do trabalho, no perído pandêmico da Covid-19. O resultado é mais uma vez surpreendente, os detalhes dos detalhes foram ressaltados e a relação entre elas segue intensa, com acréscimo de expressão − talvez porque agora quem assiste vê "de perto". O novo elenco é composto pelas bailarinas Gabriela Leite e Isabel Mamede e a trilha sonora é interpretada pela cantora Nila Branco, acompanhada de Nonato Mendes (baixo), Jader Steter (bateria) e Front Jr (guitarra/violão), que assina a direção musical. As canções do espetáculo, um dos pontos mais destacados do trabalho, agora nos fazem arrepiar de um jeito novo. A narrativa que envolve as personagens em cena é adaptada do livro “Sem Palavras”, escrito por Larissa Mundim e Valentina Prado, publicado pela NegaLilu Editora em 2013. Uma história de amor entre duas mulheres, delineada por intensidade, urgência e reticências. Valeska Gonçalves manteve contato com o texto em 2011 e montou o espetáculo duas vezes, primeiramente dividindo o palco com Flora Maria e, em 2014, com Lunna Gomes e Flora Maria. Assista AGORA à terceira remontagem do espetáculo "Nega Lilu", no canal NegaLilu no Youtube. O vídeo estará disponível temporariamente.