Naldinho | Wigvan (GO)

terça-feira, janeiro 03, 2017


Nós tínhamos treze anos quando comecei a frequentar a sua casa. Eu era amigo da sua irmã mais velha e isso já nos impunha certa distância. Ele me olhava com desconfiança, como se eu quisesse ocupar um lugar que não podia ser meu. Tinha resistência, também, porque os adultos me tratavam como a um igual e a ele ainda como se fosse criança. O que obviamente não era: fazia questão de reforçar a cada oportunidade o quanto era macho e forte.

Não poucas vezes saía do quarto sem camisa para me mostrar o abdômen e os pelos abaixo do umbigo: “Isso aqui, coisa de homem!” Depois me media, “seu braço é fininho, hein” e saía pra “bater uma bola c’os muleque” enquanto eu tinha que ficar ali fazendo coisas de gente grande. Não me importava com esses pequenos desaforos, achava divertido, mas lamentava um pouquinho sempre que ele estava ausente, deixava meu pensamento voar até ele, ao campo, depois ao banheiro e nem me concentrava mais direito.

Já sabia da sua existência pelas narrativas de sua irmã antes de conhecê-lo. “O Naldinho não é como você, é um irresponsável” e dizia suas peripécias, suas fugas de casa de madrugada, suas pequenas delinquências. E eu que era obrigado por força das circunstâncias a conviver apenas com pessoas mais velhas, achei que ali estava a minha oportunidade de ter um amigo da minha idade e passei a criar situações que nos fariam próximos. Me oferecia. Para ajudar o pai a declarar o imposto de renda. Para ajudar a mãe, costureira, a organizar seu caderno de clientes. Para buscar seus irmãos menores na escola. Para supervisionar seu grupo no acampamento da igreja. Aos poucos percebi que isso não contribuía de nenhuma maneira para que ele tivesse interesse em ser meu amigo.

Um dia ele bateu no portão da minha casa, acho que já tínhamos quatorze. O joelho estourado, os chinelos nas mãos, “levei um tombo de skate, mano” e eu o deixei entrar, ofereci água, depois ajudei a lavar o joelho, “se eu chego assim, minha mãe me mata”, fiz um curativo e emprestei meus chinelos. Ele não parecia querer ir embora, entrou no meu quarto, folheou livros, “Não sei como cê gosta de ler, acho um saco, única coisa que gosto de ler é pornô”. Por sorte – o que permitiu que continuássemos o assunto – eu tinha uma revista recém-lançada de uma atriz famosa que eu peguei mais por curiosidade do que por desejo.

 Fotos: Larissa Mundim

Começou a falar obscenidades. O tamanho dos seios e que cabiam direitinho na boca, que ele a mandaria fazer isso e aquilo, a chupar e a engolir, a deitar e a ficar em pé, a se abrir e a se fechar. Ele se excitava com as fotos e eu por aquilo que ele dizia, rindo de nervoso e de inveja da atriz por despertar nele uma vontade que ele nunca teria ao meu respeito. “Olha o jeito que eu já tô”, marcando o pau sob o calção de jogar futebol e quando eu pensei em aproximar a minha mão, ele: “putz, já tá tarde”, ou qualquer desculpa assim. No susto, apenas consegui dizer: “volta depois, pra gente conversar mais”. Ele, por sorte, com sua fala na idade certa, com pressa e decidida: “Amanhã. Vou voltar amanhã. Pra devolver seu chinelo.”

Aquela foi, de fato, a primeira visita de outras tantas, todas em horários que eu dizia estar sozinho. Naldinho sempre ia embora, no entanto, quando minha mão parecia inevitável. Com o tempo, ele foi ficando mais confortável ao meu lado, passou a permitir beijo, “no rosto?”, “claro!”, e até se esquecer dentro de algum abraço. Em uma tarde de chuva ele tirou o calção e a camiseta e os deixou secando atrás da minha geladeira. Deitou sobre o meu peito só de toalha e, em silêncio, nos abraçamos depois, como se abraço fosse perfeita linguagem. Ainda demorou umas semanas até ele deixar o pau sair da cueca um tantinho de nada, fingindo que era descuido, e alguns meses até começar a andar nu pelo meu quarto sem vergonha de me pedir para fazer as coisas que, na primeira visita, ele queria fazer com a atriz da capa da revista.

Na frente dos outros, tentávamos sem sucesso simular a hostilidade que havia entre nós no início. Aos olhos mais atentos, como os da sua irmã, intimidades não passavam despercebidas.  A maçã mordida por mim que ele continuou a comer sem fazer cerimônia. O chiclete que ele dividiu comigo depois de já ter enfiado na boca e eu aceitei sem me preocupar com a saliva. Alguns segundos de arrepio quando nossos pés se encostavam debaixo da mesa. Coisas que para os outros eram sem sentido, mas das quais ambos achávamos graça e tanta. Frases completadas quase que por telepatia ou ditas em uníssono. A rapidez com a qual ele ofereceu para dividir a cama comigo em uma noite que, por conta da chuva – bendita seja a chuva – eu não pude voltar pra casa.

Não dormimos naquela noite, ficamos encostados o máximo que podíamos, apesar do calor, apesar do suor, apesar do medo de alguém abrir a porta e nos flagrar tão abraçados que nem era possível saber qual pé estava na mão de quem, algo que nem nós estávamos preocupados em discernir. Tratávamos o corpo, fosse o próprio ou o do outro, com igual carinho. Talvez soubéssemos que era uma despedida. Desde aquela noite, sempre que estou íntimo de alguém ao ponto de reconhecer cada cheiro eu me preparo para o fim como se fosse destino repetir a dor da mutilação que senti ao ser proibido de falar com o Naldinho.

Eu achava que fosse a possibilidade de sexo que tivesse ofendido tanto a sua família para exigir meu afastamento com o pretexto de que eu exercia sobre ele uma influência maldita. Hoje eu sei que foi a intimidade, não o sexo. As pessoas podem perdoar que dois meninos se toquem, mas não podem perdoar que dois meninos se amem. Obedeci. Embora tivesse recursos para enfrentar a todos, preferi não me comportar como o adulto que julgavam que eu fosse para não colocar em risco a segurança daquele a quem todos viam ainda como menino. Logo, sua família se esqueceria desse seu desvio e ele reincorporado ao mundo dos normais sem maiores danos. Não seria nem castigado porque o castigo exigiria o reconhecimento de uma falta abominável da qual não se pode absolver um homem. Que a culpa fosse toda minha e que ele ficasse seguro entre os seus.

Dez anos depois, eu o encontrei no ônibus, por acaso. Reinaldo, agora sem diminutivo, barba na cara, voz grossa, homem casado, dois filhos, emprego de três mil real. Enquanto sua boca falava coisas de homem-pai-de-família e eu tentava encaixar nela as obscenidades desajeitadas de outrora, sua perna encostava-se confortavelmente à minha, como se nunca tivessem se afastado. Ficamos em silêncio depois de contarmos nossas notícias para prestarmos atenção ao toque e tentar matar a saudade daqueles abraços da adolescência.

“Meu ponto é o próximo.”
“Você tá morando por aqui agora?”
“É, me mudei já faz uns oito anos.”
“Por isso passei na sua porta e nunca mais te encontrei.”
“Tava precisando de curativo para o joelho?” – e ele enrubesceu diante da memória.
“Não, só queria saber como você tava.”
“Bem, vou descer. Quer conhecer minha casa?”

Ele, em um sorriso contraditório entre a vontade e o medo, disse sem me olhar nos olhos:



Wigvan é Wigvan Pereira. Na definição da jornalista Déborah Gouthier, um mistério arregalado. Escrever, assim como tudo o que faz, é apenas uma forma de pedir amor. Dificilmente você o verá pelas ruas da cidade - motivo pelo qual muitos até duvidam que ele existe. Mas ele não se importa. Prefere que conheçam apenas as histórias que tem para contar.


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