Uma vida em fuga | Roberta AR (DF)

terça-feira, janeiro 03, 2017



Decidi fugir. Achei mais fácil do que ficar encarando coisas que não vão mudar mesmo. E a fuga acabou virando um estilo de vida, minha marca registrada. No começo, só fugia daquilo que era grande e medonho, hoje, qualquer coisa que doa é motivo.

Quando eu era nova e resistente, aguentava ouvir horas de agressão do meu pai violento com o rosto crispado e resoluto de quem estava pronta pro enfrentamento, mesmo que aquilo significasse a morte, o que até não estava longe de ser uma possibilidade.

Em pouco tempo, descobri que a coragem é inversamente proporcional à idade. Fui envelhecendo e acabei ameaçada de modo brutal e cortei o pai da minha vida, parei de falar e de ouvir, mesmo que ele falasse e continuasse perto. Algo rompeu em mim e, em qualquer contato, fugia para esse estado anestesiado que meu corpo inventou. Eu olhava para ele e não conseguia ver seu rosto, era tudo embaçado, fora de foco, como aquele personagem daquele diretor cult de cinema americano.

Porque parei de me relacionar com o pai, a mãe começou a infernizar, que aquilo era feio, “o que vão pensar da gente”, não de mim, claro, quem era eu pra alguém se preocupar comigo, era o que iam dizer deles, dela, “que horror”. A mãe ganhou meu silêncio e torpor também.
Aqueles primos mais próximos entraram na jogada. Achei que viriam saber como estava, mas meu pai tinha emprestado dinheiro para eles, então o problema era eu. Não aguentava mais tantos me cobrando, querendo que eu “tomasse jeito, que a vida não é isso”, e parei de visitar pessoas das quais eu gostava, para não ouvir mais aquilo.

Em pouco tempo, parentes que só via em funerais e casamentos começaram a me procurar e tomar satisfação, achei tudo tão sem noção que só não respondi os e-mails ou cartas, nem lembro mais, e vi que algumas cidades do interior não poderiam mais estar no meu roteiro de viagens, porque viriam atrás de mim.

Eu já trabalhava e o chefe começou a gritar comigo porque sim. Chamava de burra e outras coisas que não lembro. Eu saía do andar na hora ou ia para o banheiro. Meus colegas achavam que eu tinha algum problema cognitivo, porque nunca me exaltava, estava sempre sorridente nos elevadores, enquanto o chefe do departamento técnico urrava “sua burra” e estremecia todo o prédio ao gritar comigo.

Acabei me demitindo do emprego, quando todo mundo achou que eu ia ser promovida a secretária capacho de alguém que urrava com seus subordinados em um andar mais alto da empresa. Dei adeus e nunca mais falei com ninguém, depois de meia década de sorrisos que nem lembro de ter dado.

Tinha um namorado também, nesse tempo. E a gente se gostava e ele me apoiou em um monte de coisa. Conheci muita gente com ele, em lugares por onde nunca tinha ido antes. A cidade era grande e grande era o nosso coração, eu pensava. Mas o grande coração queria mais do que eu e eu fui ficando pequena e rancorosa num canto até não dar mais. Sumi daqueles lugares todos que ficaram tão familiares com o passar dos anos e daquelas pessoas que via quase todo dia, encontrando de novo aquele lugar quieto e morninho, num quarto com as janelas fechadas e a luz apagada.

Cheguei à conclusão de que o problema era aquela cidade, não podia permanecer ali, não tem como alguém conseguir uma relação linda e maravilhosa com alguém num lugar em que a solidão é o único fim possível depois de uma noite linda ou de uma relação que era tão importante para você.

Um lugar menor era tudo o que eu queria, em que todos se conhecessem e que as pessoas gostassem de estar juntas. Resolvi me dar férias e conheci um paraíso na beira do mar, com um grupo de pessoas descoladas e me apaixonei por uma delas. Artes visuais, música, zines, aquilo prometia ser um tempo de realizações, de colocar tudo para fora. Larguei tudo, álbuns de fotografia, roupas de frio, rasguei as cartas de amor e queimei. Um novo começo cheio de esperança.

Assim que pousei, começou o tempo da chuva na cidade, minha casa nova virou puro mofo e minha sinusite me deixou de cama. Mas eram muitas as possibilidades, eu tinha que melhorar logo para ir na reunião de um novo projeto. O primeiro ponto de pauta da reunião era “não queremos ninguém de fora”, assim mesmo, sem meias palavras. Voltei pro mofo e fiquei de cama até conseguir sair dali e deixar tudo pra trás de novo.

Mudei de cidade, de novo, ainda com a esperança de conseguir fazer coisas com pessoas. A internet era ainda uma novidade de poucos anos. Surgiram blogs, redes sociais e eu me engajei entusiasmada nesse universo. Conheci pessoas, troquei informações, curti bandas novas e quadrinhos e cinema e vídeos online (a revolução!). E comecei a buscar novos parceiros para novas empreitadas, porque fazer em grupo é sempre mais fácil e mais gratificante.

Tentei uma, duas, três, quatro, até que um dia um conhecido me perguntou se eu não cansava de cair nessas armadilhas e golpinhos e abandono todas as vezes e eu fui me afastando de tudo em definitivo.

Parei de usar meu sobrenome para que as pessoas não me encontrem. Troquei meu número de telefone e meu endereço de e-mail. Parei de trabalhar e pagar o cartão de crédito e, milagrosamente, ainda consigo comer todo dia, pelo menos até hoje, de amanhã não sei, como ontem não sabia de hoje.

Achei esse pedaço de papel aqui no canto e decidi escrever sobre isso tudo para justificar pra mim mesma o estado em que estou, antes que a esperança queira voltar.

O tempo da juventude se foi, da energia e disposição gratuita. O cansaço e a clareza de quem não vê saída tomaram conta. Parei de atender telefonemas faz um ano e meio. Faz uns seis meses que não abro um e-mail. A última coisa que larguei foi aquela rede social, meu último contato com conhecidos. Hoje estou aqui, neste canto, tentando encontrar um sentido para o que é apenas aleatório. Eu tenho importância ou não tenho. Tanto faz. Isso é problema de quem olha.

Não quero morrer, quero só estar assim, dormindo um dia e acordando no outro, sem precisar dizer quem sou, o que faço, porque faço. Sentar e olhar o que estiver na frente, prestar atenção no que não pode me ferir, porque apenas existe, independente de mim. E eu fazendo parte, mas dispensável também. Essa solidão que me afasta da dor. Passeio por lugares vazios de pessoas, imaginando que estou andando pelas ruínas da civilização, como uma sobrevivente, e meu dou conta de que tudo é mesmo ruína, apenas com um pouco de maquiagem. Nada importa, eu não importo, continuo fugindo do que disseram que era meu dever até o fim, que virá quando tiver que vir.

Roberta AR é paulistana, radicada em Brasília há 14 anos. Escreve ficção na internet, em zines e publicações coletivas faz uma década, trabalha como jornalista há um pouco mais tempo que isso, para o próprio sustento e para divulgar trabalhos e ideias que acredita.

Foto: Roberta AR

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