O farsante

quinta-feira, novembro 12, 2015

Bino montava guarda, de olhos arregalados, escaneando a rua de cima a baixo, ruminando febril a dor da espera. O ladrãozinho de celulares, as amigas inseparáveis, o velho catador de latas de alumínio, os pivetes skatistas, a mulher que trabalha no Banco do Brasil e o seu marido inútil já haviam voltado pra casa. Manoel Carlos, não.

Por volta da meia-noite, ele subia embalado a Rua do Calvário, trança aqui e acolá, sorriso congelado no rosto, era fresca a memória do cheiro do cabelo da morena do segundo período. Certeza que a paquera tava rolando. Caderno espiral enfiado na parte traseira da calça social pra liberar os braços, gesticulava como se fosse puxador de escola de samba. Caprichava no sotaque fake carioca:

— Não é mole não... não é mole não, estudar uma unidade por dia, não é mole não...

Era basicamente essa a letra do pagode universitário feito por Manoel Carlos, caminhando do bar do Onofre, onde a turma da faculdade se reunia às quintas-feiras, até o Setor Revelação II.

— Não é mole não...

Expressão instantânea de desprezo. Bino ouviu de longe a balbúrdia e já deu de cara com o ébrio. Que felicidade tola. Esperou que o estudante se aproximasse, mas não muito, e, antes de dar-lhe as costas, suspirou artificialmente e rosnou em pianíssimo. Transpôs a grade e, pela soleira pivotante, penetrou na ampla e sombria sala de estar e de permanecer acordado por horas a fio, até que o dia raiasse e aquele sentimento canino de abandono tivesse se transformado em fome, sede, desespero por carinho.

Manoel Carlos entrou logo depois, apressado, com o rabo entre as pernas. Bino fingiu que dormia, enroscado nos rotos panos da cesta básica, jogada ao lado do sofá. Tirou os sapatos, emudeceu o morro e seguiu pro quarto.

Antes das seis da matina, despertou com o próprio ronco, raspou fundo na garganta e escarrou de lado. Porco! Tossiu à beira da asfixia como de costume e, ao aspirar o ar viciado transportado das selas do Presídio da Papuda, pressupôs a presença de Bino, ainda de olhos fechados. Fez huuuuuum. E nada. Huuuuuum. Bino? Procurou o amigo ao redor − pequenezes sempre foram sua paixão, desde a infância.

Os dois mantiveram conexão visual motivada pelo afeto matinal, algo primitivo muito efêmero que antecede o acesso à memória da noite anterior cobrando postura.

— E então...

Nada. Longos segundos se passaram.

— Que porra de relação é essa?

Silêncio.

— Vem cá, Bino.

— Grrrrrrrr...

Satisfeito com o segundo chamado não correspondido, o cachorro saiu desfilando e sumiu até o sábado à noite, sem dar notícias.

E para Manuca, a feijoada com os amigos foi pro saco, tamanha era a preocupação com o bichinho. Também não conseguiu se concentrar no jogo de futebol de sexta à noite − a televisão havia se transformado em ruidoso tubo de luz oscilante sem sentido e parado no tempo. Dominado pela angústia, foi ao supermercado comprar um ossinho novo e a ração favorita do Bino. Dedicou-se longamente à escolha dos produtos, observando pela primeira vez que os cães das embalagens sorriam e eram felizes, todos eles pareciam estar super em paz com seus donos, pessoas brancas e bem-sucedidas de dentes alvos e cabeços bem cortados. Poxa! Eu quero meu amigo de volta.

Boleros na vitrola, era sábado à tarde e a faxina estava em curso. A cada tufo de pelo encontrado, a culpa marcava ponto. Inicialmente, removeu os móveis para caprichar na varrição mas, se sentindo estimulado à mudança, decidiu reformular o desenho dos ambientes, com exceção da copa. Há mais de 20 anos, Dona Flor havia escolhido para as coisas um lugar definitivo e, após sua morte, o neto e herdeiro da casa não mexeu em nada, nem mesmo para a retirada do pó. No final do dia, a crise alérgica instalada teria valido a pena. Tudo lindo. Manuca havia feito miséria com aquele lustra-móveis. Como nos velhos tempos, abriu então as cortinas para observar a luz mais dourada do dia incidindo sobre a cristaleira e sobre a pesada mesa de jantar, alcançando enfim o relógio de parede quando soasse dezoito horas. A dedicação ao impossível renovou as esperanças do rapaz sobre o regresso de Bino para o aconchego do lar.

Tomou banho e fez a barba, leite com café e pão com manteiga, esparramou-se no sofá e foi se entregando à melancolia enquanto praticava malabarismo com a bolinha de borracha favorita do cão. Binooooooooooooo! Imaginou cenas diversas, com texto e sem texto, ensaiou simpatia para dar as boas-vindas. Noite adentro reagiu prontamente a cada rangido, estalo, zumbido identificado dentro da casa e, em seguida, na vizinhança e, posteriormente, no bairro inteiro.

Por volta das duas e meia, tic-tic-tic... tic-tic-tic eram as unhas do pequenez arranhando o piso glacial do alpendre. Ai meu Deus, ai meu Deus. Bino deteve-se na entrada por um instante. Quando surgiu na sala, apresentou-se contido e vagaroso, sem demonstrar cansaço. Manuca cumpriu seu plano cênico da melhor forma que pode, disfarçando o incômodo diante da sujeira do cão. Ser humano ou bicho nenhum fica nesse estado sem a intenção de ficar. Pensou.


Os olhos do recém-chegado passearam pela casa e, reticentes, se fixaram no dono. O rapaz estendeu os braços. O animal avançou contando os passos e, inesperadamente, como se fosse gato, saltou sobre o sofá, rescendendo carniça. Esfregou-se contra o corpo perfumado de Manuca, depositando as ruas no seu pijama. Lambeu seu pescoço e babou em sua orelha, desvencilhou-se antes do abraço consolidado para cair dentro da cesta, forrada agora com uma toalha amarela da Dona Flor. Enrodilhou a almofadinha bordada: “Sou da vovó”. Mijou ali. Sem dizer boa noite, escolheu na cozinha um canto pra dormir.

(conto publicado na antologia "As dores de Josefa", Coleção e/ou, Selo Naduk da Nega Lilu Editora)

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