O súbito

quarta-feira, novembro 18, 2015


Tchurururururu-ruru-ruru-uuuu. Recorrente na busca por serenidade, aquela música ele não sabia cantar, desconhecia o significado da letra, mas sentia prazer na vibração instalada no fundo da boca. Solfejava, no entanto, quando estava só, porque gente ruidosa incomoda e irrita as pessoas.

Naquela quarta-feira especial, estava refazendo a barba. Regulava a ansiedade agindo devagar — sabotagem da relação entre tempo passado e tempo vivido. Tchurururururu-ruru-ruru-uuuuuuuuu. Os olhos colados no espelho, precisava de óculos.

Ronaldo aparou também os pêlos do nariz, penteou a farta sobrancelha rebelde que apontava para a testa, recentemente ampliada pela leve calva com potencial evolutivo. Afagou o peito como se gratificasse um Borzoi adulto. Fez checagem obrigatória de bísceps. Oh, yes! Oito e meia. Sempre bom ter meia horinha de sobra para a escolha do figurino de um encontro romântico.

Mas naquela noite rara, Marcel se antecipou e, achando a casa aberta, entrou devagarinho para surpreender com rosas alaranjadas. Vasculhou a sala com o canto dos olhos, na ponta dos pés seguiu pelo corredor e ouviu a melodia. Deteve-se por um segundo, reconhecendo as notas. Apontou a cara no quarto e dobrou o pescoço pra dentro do banheiro. Pela fresta da porta flagrou a cena íntima. Ronaldo vestia cueca e meia.

Tchurururururu-ruru-ruru.Tchurururururu-ruru-ruruuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuuu.

Fanáticos religiosos, pool parties, hermetismo, culto às baleias, citação de teóricos desconhecidos, torcidas organizadas, ton sur ton, Pink Floyd no sol, intolerância a lactose, encontros anuais obrigatórios, cerimônia de formatura, telemarketing no domingo. Recolheu então seu último gesto, sinuosamente deslocou-se de costas até o corredor. Silencioso, alcançou a saída, apanhou sôfrego a maçaneta e evadiu.


You Might Also Like

0 comentários

Subscribe