Novas práticas de recriação

terça-feira, abril 09, 2013

Dona Aldeni nos aguarda amanhã, antes das nove, no Setor Criméia Leste, em Goiânia. Lu e eu seremos convidadas a entrar pelo portão que ladeia a residência da frente, agora alugada pela Gabriela, onde um dia morou Ana, Luiz e Sofia.  

A neta da senhora está pra escola? Pergunto enquanto observando o lodo viçoso assentado no rodapé do muro. Ela responde, mas não ouço, afinal aquele verde é perturbador, lembra minha infância e, nessas horas, fico surda.

A Lu, caladinha e eu puxando prosa: a senhora vai se encantar com a flor que eu achei. Era a única do canteiro do Hospital de Medicina Alternativa do Estado de Goiás e quem me deu foi a Isabela, engenheira agrônoma que trabalha lá. Fiquei muito agradecida porque coloquei minha rede do Facebook pra procurar o tal Dente-de-leão, mas o pessoal só curtia, sem ajudar em nada. Quando percebi que os anúncios de PROCURA-SE não seriam suficientes, busquei informação no Google e encontrei telefones de médicos homeopatas, mas as secretárias das clínicas não demonstraram grande interesse em colaborar. Eu explicava: não, não quero marcar consulta, mas gostaria de pagar pelas plumas, preciso de duas... mas se você puder me arrumar três seria melhor porque a Lu vai gostar se eu for prevenida.

Rompendo o corredor, recontei a história daquela tarde de domingo, quando o saci levou pra dentro do barracão do chão encarnado plumas entrelaçadas coreografadas. De bobeira com a câmera não mão, não tive dúvidas de que eram Nega & Lilu fantasiadas e gravei as imagens, em plano sequência, que deram origem ao curta-metragem A Fuga, exibido no 7º FestiCine, em Goiás, e no XIV Festival Nacional 5 Minutos, na Bahia.

 Aí eu disse pra Isabela: e a ideia é voltar amanhã à locação do filme pra Lu fotografar, já falei com o casal maranhense, Aldeni e Batista, que mora lá onde o piso é de cimento vermelho, mas na frente da casa não tem mais nenhum pezinho de Dente-de-leão. Quando eu era repórter da TV Brasil Central eu estive aí no Hospital de Medicina Alternativa pra fazer uma matéria interessante sobre o Quebra Pedra e fiquei pensando se vocês teriam essa outra planta também. A engenheira agrônoma contou que o horto estava desativado, no momento, e se ofereceu pra contatar um amigo que talvez tivesse pistas pra mim.
— Preciso de dois dias para encontrá-lo, disse, minando minhas esperanças.
Pedi o email dela e encaminhei o link do vídeo, um jeito meu de agradecê-la pela atenção e de desviar o pensamento que me convencia de que as coisas não seriam como planejei.  
— Acabo de achar uma flor do Dente-de-leão aqui. Só uma! Era Isabela ao telefone minutos depois. Mas ela não vai durar se chover. E corri pra lá.




Fotos: Larissa Mundim

Expectativa criada, eu tinha as duas me olhando feito criança curiosa pelo final da história. Com a caixinha preta nas mãos, tripudiei: a flor de arquitetura orbital e luz própria, milagrosamente não havia sido estraçalhada pela brisa, permanecia íntegra, conservante de sutileza sem par e delicadeza maior do mundo. Compartilhei então meu tesouro com Lu e Aldeni, que permaneceram em silêncio, como quando a gente retorna de um passeio a Veneza.

Por fim, como gente abduzida, entramos na sala de TV do casal para o exercício insólito de recriação da dança das plumas apaixonadas. Meu coração soprou a flor, pagando com a desarmonia pelo crime que é cometido quando a perfeição é ultrajada e sempre que Doutor Frankestein ressuscita a noiva.


(referência ao filme A Fuga, de Larissa Mundim)

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