Fora dos domínios do realismo fantástico, a Nega não passava de uma sombra no feriadão vazio de alma. Toda aquela tranquilidade era pura procrastinação. Crescia a lista de pendências prioritárias para quem só se animava a atacar os afazeres periféricos.
Acompanhava o olho do furacão a quilômetros de distância enquanto trocava o óleo do carro, desfazia a mala da semana, conferia as notícias da hora, lia Virginia Woolf sobre as circunvoluções do drama elizabetano pra piorar a sensação de improdutividade.
Cinzas vulcânicas provocavam novo fechamento dos aeroportos argentinos e hackers brasileiros honravam ataque antipatriótico quando, enfim, o pensamento da Nega viajou livremente, percorrendo o espaço sideral ao encontro de Nina, em completo isolamento, e de Lilu, ilhada de imensidão.
Na presença de uma e de outra surgia estática, latente e atenta a mirar intenso movimento de rotação em curso. Corpos encasulados girando conscientes sobre o próprio eixo em busca silenciosa de auto-regulação.
Que privilégio era observar a beleza envolta no mistério de processos tão íntimos revelados nem mesmo pela ficção. E a Nega sorria de olhos semicerrados e lacrimosos, respirando densamente, permitindo que o coração galopasse sem rumo.
Que privilégio era observar a beleza envolta no mistério de processos tão íntimos revelados nem mesmo pela ficção. E a Nega sorria de olhos semicerrados e lacrimosos, respirando densamente, permitindo que o coração galopasse sem rumo.
"Não sei se a vida é curta ou longa para nós, mas sei que nada do que vivemos tem sentido, se não tocarmos o coração das pessoas.
Muitas vezes basta ser: colo que acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silencio que respeita, alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove.
E isso não é coisa de outro mundo, é o que dá sentido à vida. É o que faz com que ela não seja nem curta, nem longa demais, mas que seja intensa, verdadeira, pura enquanto durar. Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina."
Muitas vezes basta ser: colo que acolhe, braço que envolve, palavra que conforta, silencio que respeita, alegria que contagia, lágrima que corre, olhar que acaricia, desejo que sacia, amor que promove.
E isso não é coisa de outro mundo, é o que dá sentido à vida. É o que faz com que ela não seja nem curta, nem longa demais, mas que seja intensa, verdadeira, pura enquanto durar. Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina."
Cora Coralina pegou a Nega em Goiás Velho e sumiu. Deixou rastro de inspiração e paz, porque sabe plantar roseiras e fazer doces.
Sedutora, a poetiza também conquistou afagos de Rita Lee que, apesar das menções cheias de tesão durante um show tão lindo, não tocou o coração da menina-feia-da-casa-da-ponte do Rio Vermelho. Ela queria a Nega e apresentou-se na madrugada, pronta para se despir, na penumbra do quarto turquesa.
Surgiu anunciada pelo galo às 4 em ponto e sentou-se na cama rangendo molas. Respirou o ambiente e presenciou o despertar incrédulo e imediatamente afetuoso da Nega, que na adolescência fantasiou tantas vezes trepadas homéricas também com Clarice Lispector, Orlando Silva e Tarsila do Amaral. Era Cora, finalmente!
Aninha desfez o coque vagarosamente, valorizando o gesto e encorajando a Nega a entrar na história que encontrou diante de si, acordando do sonho em que cuidava de Lilu febril.
Mirou aquele olhar sereno. Sintonizou Nina, caiu dentro e teve a certeza de que ia rolar.
― Sempre rola, balbuciou Cora.
Coralina catou a Nega.
Goiânia, 10 de junho de 2011.
Prezada Rita Lee,
Sem Palavras é uma obra literária inquieta, finalizada com o desejo de que a história de Nega e Lilu jamais sofresse desatualização, que permanecesse viva, evolutiva e significante do nosso tempo.
Para tanto, criou-se o Projeto Esfinge que comenta, transforma e difunde esse conto inquieto, estimulando a confluência entre linguagens artísticas. As ações do projeto se desenvolvem sempre em colaboração com outros artistas e já estão em curso no território da dança, literatura, cinema e artes visuais ‒ intervenções urbanas, body art e fotografia. Encontre em anexo uma síntese do Projeto Esfinge e ficha técnica.
Nega e Lilu são de carne e osso na ficção e, na passagem de Rita Lee e banda por Goiás, durante o XIII FICA ‒ Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental, a Casa da Cultura Digital tem a satisfação de apresentar-lhe de forma sucinta esse trabalho artístico que, nos últimos dias sensibilizou-se para a importância do combate à homofobia no Brasil, movimento que ganha força desde o dia 25 de maio, quando a bancada religiosa congressista encontrou meios para impedir, mesmo que temporariamente, a produção do chamado “kit anti homofobia” pelo Ministério da Educação.
De maneira ideológica, Nega e Lilu não levantam bandeira pelas questões de gênero e da sexualidade, mas militam pelos direitos sociais. Elas foram criadas para estimular o autoconhecimento, o respeito a todo tipo de diversidade, à tolerância, podendo somar esforços na construção de uma cultura de paz. A história e as ideias de Nega e Lilu estão registradas em www.negalilu.blogspot.com .
Nesse contexto e de acordo com os pilares conceituais que visam comentar, transformar e difundir essa obra literária de ficção, você (Rita Lee!) é nossa convidada a integrar também o Projeto Esfinge, protagonizando uma flash mob ao vestir a camiseta de Nega Lilu, durante o show na Cidade de Goiás, em 19 de junho de 2011.
Certa de seu entendimento da importância de iniciativas que propõem o diálogo da Arte com a vida, agradecemos antecipadamente sua carinhosa manifestação de apoio.
Nega Lilu
Um protesto silencioso anti-homofóbico ocupa as ruas da Cidade de Goiás, neste final de semana que reúne milhares de pessoas para o encerramento do FICA – Festival Internacional de Cinema e Video Ambiental. Desde a sexta-feira, militantes circulam com camisetas e espalham, pelo centro histórico da antiga Vila Boa, adesivos que propõem uma intervenção urbana pela causa dos direitos sociais.
O conteúdo das camisetas e adesivos é remissivos ao blog Nega Lilu (www.negalilu.blogspot.com). O diário virtual é uma ação do Projeto Esfinge, que integra as diversas linguagens artísticas em torno do comentário, da transformação e da difusão do conto Sem Palavras, de autoria de uma escritora goiana que, sob o pseudônimo Nega Lilu, assina a produção literária que tem mais de mil acessos por mês.
Nesta ação do Projeto Esfinge, Nega Lilu lança mão de linguagem publicitária para manter o episódio alardeado pela imprensa no dia 25 de maio aquecido na memória das pessoas. Naquele dia, recuperando-se de pneumonia, Dilma Rousseff declarou:“Não vai ser permitido a nenhum órgão do governo fazer propaganda de opções sexuais”, justificando a suspensão da produção do kit anti-homofobia (elaborado pelo MEC), após protestos da bancada religiosa no Congresso.
Segundo a autora, o blog não chega a ser instrumento de militância das questões de gênero e da sexualidade, no entanto, se mantém atento em defesa dos direitos sociais plenos. “A obra Nega Lilu foi criada para estimular o autoconhecimento, o respeito a todo tipo de diversidade, à tolerância, podendo somar esforços na construção de uma cultura de paz”, argumenta a escritora.
A homofobia ganhou espaço no blog com a publicação do texto “Manifesto íntimo anti-homofóbico”, no dia 26 de maio, iniciando uma campanha que, em seguida, distribuiu anúncios nas redes sociais com o mesmo slogan que pode ser visto na multidão que prestigia o FICA: “Seu kit anti-homofobia: negalilu.blogspot.com” . De acordo com a autora, o fomento à discussão foi responsável pelo record de acessos ao conteúdo do blog na última semana do mês passado.
“Os cerca de 50 acessos dia se transformaram em 120 e, desde então, continuamos mantendo uma boa performance, com média de 90 leitores diários”. O resultado é um salto de mais de 100% nas estatísticas do diário virtual que, somente em maio teve 1.262 acessos. Para Nega Lilu, o desempenho revelado a partir da publicação de textos que comentam os fatos do dia-a-dia é um indicativo estratégico na conquista de audiência para o blog literário de ficção que, inicialmente, tratava apenas da breve história romântica de Nega e Lilu.
Manifestantes
A pedagoga Simone Rosa foi uma das primeiras a se candidatar a garota propaganda da campanha. “Eu não poderia ficar fora dessa”, ressaltou a leitora do blog. Segundo ela, importante é não perder uma oportunidade legítima de manifestação para que o Brasil se desenvolva cada dia mais tolerante às diferenças sociais. “Tenho orgulho de vestir essa bandeira que nos fortalece enquanto Nação”, completou.
Na noite de sexta-feira, circulando próximo à Praça do Chafariz, o jornalista Rodrigo Oliveira também exibia a camiseta de Nega Lilu de peito aberto. “Dessa forma eu protesto contra o preconceito, contra a discriminação e testemunho em favor de uma sociedade que possa viver em paz consigo e com o outro”, prega.
Outra “agente” que circulava pelo FICA após o show de Maria Rita era a odontóloga Cristiane Domingues, divulgando o Projeto Esfinge à medida que desfilava a marca Nega Lilu. De acordo com ela, a homofobia é uma ameaça social e merece a atenção de todas as pessoas. “O que muita gente não percebe é que todos nós temos relação direta ou indireta com essa questão, afinal, a sexualidade é vida, é saúde e é parte da essência do ser humano”, opina.
A partir da simpatia de militantes heterossexuais e homossexuais pela campanha anti-homofóbica de Nega Lilu, a manifestação promete estar presente na cerimônia de premiação do FICA e nos shows. Na semana passada, a cantora Rita Lee foi formalmente convidada por Nega Lilu a participar de uma flash mob (mobilização relâmpago) no palco que estará concentrando a atenção de milhares de pessoas na noite de hoje. Fica no ar a expectativa da roqueira vestir também a camiseta. (Tuvia Carvalhosa)
Na noite de sexta-feira, circulando próximo à Praça do Chafariz, o jornalista Rodrigo Oliveira também exibia a camiseta de Nega Lilu de peito aberto. “Dessa forma eu protesto contra o preconceito, contra a discriminação e testemunho em favor de uma sociedade que possa viver em paz consigo e com o outro”, prega.
Outra “agente” que circulava pelo FICA após o show de Maria Rita era a odontóloga Cristiane Domingues, divulgando o Projeto Esfinge à medida que desfilava a marca Nega Lilu. De acordo com ela, a homofobia é uma ameaça social e merece a atenção de todas as pessoas. “O que muita gente não percebe é que todos nós temos relação direta ou indireta com essa questão, afinal, a sexualidade é vida, é saúde e é parte da essência do ser humano”, opina.
A partir da simpatia de militantes heterossexuais e homossexuais pela campanha anti-homofóbica de Nega Lilu, a manifestação promete estar presente na cerimônia de premiação do FICA e nos shows. Na semana passada, a cantora Rita Lee foi formalmente convidada por Nega Lilu a participar de uma flash mob (mobilização relâmpago) no palco que estará concentrando a atenção de milhares de pessoas na noite de hoje. Fica no ar a expectativa da roqueira vestir também a camiseta. (Tuvia Carvalhosa)
Manto colossal de Bispo do Rosário recobre São Paulo a cinco mil pés. A Nega olha pela janela da aeronave bombardeada por sentimentos confusos, instáveis, gasosos, circulantes em território delimitado por três vértices. Em cada canto uma solução híbrida, rica, própria, autônoma. Imiscíveis substâncias convivendo em arriscada movimentação, entregues ao imponderável no ambiente do primeiro encontro entre Lilu e Nina.
Agora a Nega já ia longe, mas as luzes da cidade ainda estavam por ali.
Mensagem na garrafa (Florianópolis, Santa Catarina, Brasil)
Mateus Dutra, 2011. Impressão em papel adesivo. 21 X 29,7cm
Agora!
Respondeu Gabriela cretinamente à pergunta de Angelina sem saber, em seguida, se conseguiria sustentar a decisão. Porque após aquele abraço de vida própria iriam as duas compartilhar o mesmo banheiro, cenário primeiro de inúmeros beijos e nenhuma calcinha sob a saia caqui de Lilu.
Respondeu Gabriela cretinamente à pergunta de Angelina sem saber, em seguida, se conseguiria sustentar a decisão. Porque após aquele abraço de vida própria iriam as duas compartilhar o mesmo banheiro, cenário primeiro de inúmeros beijos e nenhuma calcinha sob a saia caqui de Lilu.
A sensibilidade brutal premonitória da Nega para alguns não é mais do que uma tendência à precipitação para outros, por isso, antes mesmo de pisar o solo do Eden, constatou o degelo de sua história paralisada.
O texto escolhido para a intervenção urbana na capital catarinense não sofreu modificação na revisão do conto Sem Palavras. O mais interessante nem é isso, afinal, não foram muitas as alterações nesse sentido, no entanto, faz-se racional a crença no mistério ao sabermos que a resposta à pergunta que está nas ruas de Floripa se mantém tão atual, uma vez reapresentada por Nina.
O texto escolhido para a intervenção urbana na capital catarinense não sofreu modificação na revisão do conto Sem Palavras. O mais interessante nem é isso, afinal, não foram muitas as alterações nesse sentido, no entanto, faz-se racional a crença no mistério ao sabermos que a resposta à pergunta que está nas ruas de Floripa se mantém tão atual, uma vez reapresentada por Nina.
Vo-cê (e eu).
Vo-cê. (e eu)
A agenda de montagem do duo provocou, inevitavelmente, uma reaproximação da breve história romântica de Angelina e Gabriela, contida em Sem Palavras, para investigação da essência de Nega e Lilu. Acabei bastante estimulada para revisitar o conto, que me pedia revisão antes mesmo do início da edição final do livro. Distanciada das primeiras motivações criativas e traduzindo Virgínia Woolf para o Português, ficaram mais perceptíveis fragilidades desse conteúdo, que vem sendo comentado, transformado e difundido pelo Projeto Esfinge.
Numa revisão já concluída, atuei sobre excessos, primordialmente. Reavaliei entradas e saídas de sentenças e optei pela objetividade a fim de dar elegância ao texto. Repensei pontuação mais livre e busquei alguma variação vocabular. Palavras mais ricas me ocorreram enquanto lia alguns trechos que, por conta das escolhas coloquiais se privaram de profundidade, mas preferi não adicioná-las porque não pertenciam àquele tempo.
Engoli palavras. Preservei o mistério. Conectei assuntos que estavam desassociados em diferentes parágrafos, definitivamente consciente da amálgama que funde a trama.
As correções mais importantes dizem respeito à revisão de tempos verbais que, por conta da minha própria confusão (tendo um conto premonitório sendo escrito, construindo o presente e recriando o passado), continham equívocos que não se sustentariam nem com defesa de proposta estilística.
Mantive algumas estruturas importantes que, originalmente, trazem variação da pessoa verbal. Mas tive que dar e elas certa padronização para que se justificassem com coerência. No capítulo I, por exemplo, Angelina conta para Gabriela como tudo ocorreu, sob seu ponto de vista, com leve exercício de onipresença ‒ o que confere à história o status de ficção dentro da ficção logo de cara.
Já no capítulo II, temos Angelina ainda como narradora de uma prosa que se desenvolve agora em primeira e terceira pessoas. Para a narradora é algo como uma lembrança do fato ocorrido muito recentemente (há alguns minutos, ontem, nesta semana). Nessa parte, existe um único desfoque e que permanecerá na obra como licença poética: Você era minha. Coincidentemente esse é o texto utilizado na intervenção de rua da ação Mensagem na Garrafa do Projeto Esfinge, em Frankfurt.
A mesma estrutura narrativa está presente no capítulo III que, na nova versão de Sem Palavras, ganhou cortes e sutil interrupção, dando passagem ao capítulo IV que, por sua vez, sofreu inversões de parágrafos e deslocamentos frasais.
O restante da parte três torna-se então o novíssimo capítulo V, justamente o trecho em que, conforme o texto original, a Nega deixa de contar a história. Assim, o conto se encerra com narrativa em terceira pessoa apenas. Confesso que não havia percebido esse movimento de afastamento do ponto focal para observação à distância. Não considero a variação como um erro técnico, mas como recurso literário justificado a partir da “estética da esquizofrenia” presente na obra.
Com toda a preservação, temos um outro conto a partir de uma simples reestruturação espacial. Se antes ajustado a um fim reticente e esperançoso, agora amadurecido, Sem Palavras assume um encerramento digno.
O conto Sem Palavras está contido no romance literário de ficção, Nega Lilu, que começa a ser publicado neste blog, diariamente, a partir de 6 de novembro de 2011.
Apesar de fortes laços virtuais constituídos, é na fisicalidade que adquire concretude a busca de Nega e Lilu por plenitude no amor e pela essência da vida. Assim, o duo de estilo contemporâneo se apropria da narrativa de repertório sensorial, presente no conto Sem Palavras, para construir uma movimentação fluida, urgente, intensa que, para ser consumida, precisa se diluir, se fragilizar, como ocorre nos relacionamentos líquidos descritos pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman.
Começa daqui a pouco, no Espaço Quasar, centro cultural mantido pela Quasar Cia de Dança, em Goiânia, a primeira reunião de montagem da ação de Dança do Projeto Esfinge. É grande a expectativa pelo início do trabalho, que reúne uma equipe especialíssima e cheia de ideias sem cabimento: Ana Cristina da Rocha Lima (figurino), Henrique Rodovalho (desenho de luz), Lu Barcelos (fotografia), Mateus Dutra (cenário), Paulo Batista (design gráfico) e as intérpretes criadoras Flora Crosara e Valeska Gonçalves, que assina a coreografia.
Quando a Nega acordou de seu sono supra interrompido era quase 6 da manhã. O domingo de exageros anunciava um início de semana penoso, com trabalho atrasado e ausência de motivos para matar um leão.
Ao colocar os pés no chão, ainda sentada deteve-se num alongamento de pescoço. Que estranho. Não era assim que o dia começava. Bocejou uma, duas, três vezes sem sair do lugar. Coçou a cabeça longamente, gesto instintivo que virou um afago, enquanto tentava entender o sentido da pausa.
Sozinha e em silêncio, a Nega respirou profundamente e sentiu-se vazia como um saco plástico inflado. Resíduos de memória do dia anterior habitaram seus pensamentos. Tantas eram as palavras sopradas em seu ouvido que não poderia esperar mais um minuto para começar a escrever e escrever e escrever e escrever. A fuga de Lilu na calada da noite daria uma boa história.
Partiu quando quis, sorrateira, deixando a porta aberta. Emergiu resplandecente do corpo da Nega, espalhando pelo quarto um perfume adocicado, evocativo de sentimentos que, apesar de marcantes, estariam fadados ao esquecimento não fosse a nova tatoo.
A nítida estratégia de procrastinação da Nega era esquecer Lilu dentro dela. Poderia tê-la vomitado, mas não tinha mais estômago para intempestividades e não desejava, muito menos, atendê-la em qualquer demanda. “Devolva-me”, havia pedido Lilu há 26 dias, sem que nenhuma providência tivesse sido tomada.
Enquanto isso, a Nega confiava suas feridas ao bálsamo da passagem dos dias. O tempo foi escorrendo e, na valente convivência com a Esfinge, compreendia a existência de absurda simplicidade na complexidade revelada. Aquela imediata sensação de luminosidade que sucede o fim dos mistérios abriria alas para um arriscado exercício inconfesso de julgamento de valores. A Nega já sabia demais e, em breve, generosidade nenhuma suportaria a arrebentação da enchente.
Até que as águas rolaram violentamente, passando desrespeitosas por cima de tudo, tirando as coisas do lugar, inundando esconderijos abissais, obstruindo canais, encharcando os tecidos da Nega. Todo amor sofreria desbotamento.
A enchente encerra a série que conta ainda com os seguintes textos publicados neste blog:
Cross-dressing
Na pele de Lilu
Nega Lilu
A co-existência
Outras co-existências
O terrível velado
A visão
O preço da coerência
Si fu
Dois mais uma
Três mais uma
Enquanto isso, a Nega confiava suas feridas ao bálsamo da passagem dos dias. O tempo foi escorrendo e, na valente convivência com a Esfinge, compreendia a existência de absurda simplicidade na complexidade revelada. Aquela imediata sensação de luminosidade que sucede o fim dos mistérios abriria alas para um arriscado exercício inconfesso de julgamento de valores. A Nega já sabia demais e, em breve, generosidade nenhuma suportaria a arrebentação da enchente.
Até que as águas rolaram violentamente, passando desrespeitosas por cima de tudo, tirando as coisas do lugar, inundando esconderijos abissais, obstruindo canais, encharcando os tecidos da Nega. Todo amor sofreria desbotamento.
A enchente encerra a série que conta ainda com os seguintes textos publicados neste blog:
Cross-dressing
Na pele de Lilu
Nega Lilu
A co-existência
Outras co-existências
O terrível velado
A visão
O preço da coerência
Si fu
Dois mais uma
Três mais uma
Estou aqui porque, finalmente, não há como me refugiar de mim mesmo. Até que me confronte nos olhos e no coração de outros, estarei fugindo. Até que sofra o partilhar dos meus segredos, não me libertarei deles. Temeroso de ser conhecido, não poderei me conhecer, nem aos outros. Estarei só. Onde, senão em meus companheiros, poderei encontrar este espelho? Aqui, juntos, posso finalmente me conhecer por inteiro, não como o gigante que sonho ser, nem tão pouco o anão dos meus temores, mas como parte de um todo, compartilhando meus propósitos. Neste solo poderei criar raízes e crescer, não mais isolado como na morte, mas vivo para sempre e para os outros.
Texto escrito por Carlos Yahoo.
Texto escrito por Carlos Yahoo.