A enchente

domingo, junho 05, 2011

A nítida estratégia de procrastinação da Nega era esquecer Lilu dentro dela. Poderia tê-la vomitado, mas não tinha mais estômago para intempestividades e não desejava, muito menos, atendê-la em qualquer demanda. “Devolva-me”, havia pedido Lilu há 26 dias, sem que nenhuma providência tivesse sido tomada.

Enquanto isso, a Nega confiava suas feridas ao bálsamo da passagem dos dias. O tempo foi escorrendo e, na valente convivência com a Esfinge, compreendia a existência de absurda simplicidade na complexidade revelada. Aquela imediata sensação de luminosidade que sucede o fim dos mistérios abriria alas para um arriscado exercício inconfesso de julgamento de valores. A Nega já sabia demais e, em breve, generosidade nenhuma suportaria a arrebentação da enchente.

Até que as águas rolaram violentamente, passando desrespeitosas por cima de tudo, tirando as coisas do lugar, inundando esconderijos abissais, obstruindo canais, encharcando os tecidos da Nega. Todo amor sofreria desbotamento.



A enchente encerra a série que conta ainda com os seguintes textos publicados neste blog:

Cross-dressing
Na pele de Lilu
Nega Lilu
A co-existência
Outras co-existências
O terrível velado
A visão
O preço da coerência
Si fu
Dois mais uma
Três mais uma

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