Virginia morta e viva

domingo, julho 02, 2023

 


A percepção inequívoca de que tudo está perdido. Como quando um gesto inadvertido tomba a fileira de dominós e compromete, dentro da cabeça, o fluxo do universo inteiro. Pode ser também a sensação de despertar soterrada tendo apenas a companhia de sua própria respiração. Ou ainda o mergulho profundo demais sem chance de retorno à superfície.

Seria algo assim o “abismo” de Virginia escavado pelo medo?

Medo de enlouquecer pela convivência com o excesso de lucidez. Pavor de se descobrir uma escritora ordinária e de ser esquecida em 100 anos ─ ainda que tivesse lido todos os livros da biblioteca do pai, encontrado conforto (e diversão) na intelectualidade e, como editora, tivesse se recusado a publicar James Joyce.

Virgínia que ouvia vozes e dava a elas notoriedade está morta e viva nesta primeira metade do século 21. Ela representa o desejo de conquistas importantes para toda mulher consciente do projeto de dominação patriarcal: um teto próprio onde possa estar menos vulnerável à violência contra seu corpo e de suas filhas e netas, onde possa se sentir mais livre para expressar afetos, para ser feliz como ninguém foi, trabalhar, adoecer em paz talvez, viver e morrer com dignidade.

Sempre pensei que a morte de Virginia seria parte de sua obra, mas não a conheço a fundo, o que faz dessa afirmação mais uma frase de efeito. Blefe ou intuição. Ainda sustentava essa certeza quando cheguei a concordar com quem diz que melhor seria retomar sua leitura aos 50 anos. Que a maturidade poderia me oferecer esclarecimentos sobre os detalhes dos detalhes e sua conexão com o todo. Aos trinta e poucos anos algumas pessoas começam a projetar, na mesa de bar, um tempo mais generoso para a observação, num futuro de médio prazo, quando os hormônios já terão cumprido sua função mais impetuosa.

Estou regressando à Virginia depois de ter estado em Bloomsbury inúmeras vezes, em dias chuvosos e congelantes, em busca de alguma pulsação. Além das plaquinhas de fachada que fotografamos, não testemunhei nenhuma vibração diante daquelas casas impecáveis e, em vigília etílica, suportei ao máximo a espera sem que viv'alma entrasse ou saísse lá de dentro. Nem a proposta não consolidada para tradução de Ao farol ─ revelando também a mim o medo da mediocridade ─ foi suficiente para me aproximar verdadeiramente dessa mulher. Permaneci por décadas mirando à distância a folha que caia da árvore, ao longo de várias páginas.  

Mas neste sábado (01/07), coincidentemente aos 50, tive acesso real à Virginia, no monólogo escrito e encenado por Cláudia Abreu, em Goiânia, no programa Aldeia SESC de Artes. E agora estou aqui, Virginia, aberta para compreender melhor. Alguns dias antes havia assistido uma live em que Carla falava sobre o encontro que vocês tiveram durante a pandemia da covid-19 e as estratégias muito autênticas que surgiram para amparar a montagem deste solo narrado em primeira pessoa (por várias pessoas), com texto assinado pela própria atriz, inspirada pelas vozes que falaram aos ouvidos dela enquanto esteve mergulhada na leitura de sua obra.

Tenho justamente agora em mãos os seus contos (completos) publicados pela Cosac Naif, em 2005 ─ que intentei roubar de minha amiga Rute, há mais ou menos 15 anos, e que ganhei recentemente de presente da querida Silvana (numa circunstância muito especial!). Virginia, estou contigo. E na empolgação, confirmei na semana passada a minha participação no curso da escola A Escrevedeira, conduzido pela Noemi Jaffe ─ não acredito que alguém possa ter um começo de leitura da sua obra tão feliz quanto o meu. E estou grata. Descanse em paz então, Virginia.

 

 

 

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