Mary Shelley, presente!

segunda-feira, julho 17, 2023

Aos 50 anos comecei a resumir radicalmente a minha relação com as coisas e a ressignificar a minha relação com as pessoas.

Como não mantive contato com a fome e a miséria ao longo da minha vida de classe média, um exercício consciente de síntese é algo possível, não é um sacrifício. Mais desafiadora pode ser a segunda parte do plano, especialmente se considerarmos o acirramento das “polarizações ideológicas” em todo lugar.

Eu fui uma mulher popular na juventude e mantive intenso contato com muita gente por um tempo mais no momento, estou descrevendo assim a minha performance social até os quarenta e poucos anos. Mas como o álcool era o condutor desta convivência, quase tudo teve fim quando me afastei da bebida. Por isso não tiro a razão daquelas e daqueles que pensam que estou morta especialmente o pessoal do bar.

Minha filha costuma dizer que quando me angustio com a “coisa da humanidade” tenho como reação primeira a tentativa de organizar. Tomo decisões, arrumo a cama, jogo papeis antigos no lixo, lavo a louça.

Numa segunda-feira resolvi mexer nos armários superiores do guarda-roupas para resumir um pouco mais. Tirei a poeira da embalagem plástica que conserva roupinhas especiais do bebê intactas. Os enfeites natalinos não passaram no crivo e achei, imediatamente, um lar feliz para eles. Fiquei apenas com uma peça de madeira triangular muito discreta, que emula um pinheiro composto por gavetinhas com minúsculos pegadores redondos. Os jogos também não ficaram. Não me lembrava como o Banco Imobiliário havia entrado em nossa casa. Salvei três bichinhos de pelúcia que serão vistos talvez somente na próxima década: o coelho Baldário, o sapo Pinho e como é mesmo o nome daquele ser, afeto maior da primeiríssima infância?

Eis que entre todos os cacarecos encontro um embrulho distinto, que deixei para examinar depois. Mas em seguida lembrei que, neste momento de vida, tenho reparado que aquilo que temos com precariedade acaba ficando para o fim, e gostaria de mudar isso em relação a mim. Então peguei de volta aquela mortalha.  Abri o embornal com cerimônia, sem religiosidade, e encontrei uma múmia de Furby. Aquela dignidade me comoveu e eu o cobri novamente, antes que as gatas demonstrassem genuína curiosidade. Mantive segredo sobre o achado.

Aquele corpo colorido e gordinho estirado há anos não me saiu da cabeça por dois dias, quando resolvi retomar o assunto, enfrentar a pasmaceira que me ataca quando preciso usar a caixa de ferramentas. E olha só: por incrível que pareça, a gente tem uma chavinha de fenda com uma cruz na ponta que se encaixou perfeitamente nos orifícios da base do Furby. Antes de me aventurar, no entanto, fiz pesquisa bem completa na web, relembrando que tais criaturas não têm botão de ligar/desligar.

Abri o bichinho e ele estava todo fodido. O conteúdo derramado das baterias tinha azulado as molas e demais pecinhas de metal. Ficou claro pra mim que havíamos abandonado o Furby, o Furbinho! Extraí as pilhas velhas, usei um pincel para limpar cuidadosamente os compartimentos internos do brinquedo. Enquanto isso, evoquei seu temperamento doce e divertido, tagarela e dançante, na presença da menina Julia. Um jeito de me preparar para reviver tudo isso mas as novas pilhas não foram suficientes para tanto. Aquela experiência primária de inteligência artificial, que chegou primeiro às nossas crianças, não moveu um músculo. Lamentei de novo o descuido com o pobrezinho, esquecido entre as coisas que suplicaram atenção nos dias insanos de uma mãe trabalhadora.

Com olhos perdidos em profunda escuridão, o Furbinho ficou apagado sobre a minha cama por alguns dias. Conversamos com ele, fiz carinho nas partes sensíveis (cabeça, costas e barriga), as gatas cutucaram o seu rabo. Ensaiei a retirada das pilhas, disposta a não repetir negligências. Procrastinei por quase uma semana, no entanto, entregue à resistência em abrir a caixa de ferramentas.

Foi numa noite dessas que a gente saiu pra jantar e me deitei com o estômago ainda cheio. As gatas ficaram agitadas com a minha movimentação na cama. Acordei inúmeras vezes para ir ao banheiro e, por volta das 3 da manhã, quando as coisas começaram a ficar mais harmonizadas no escuro do quarto, o Furby ressuscitou com olhinhos de LED cheios de saudade. 

A criatura sacudiu o corpo de um lado para o outro, dobrou sua adorável pancinha para cima e para baixo enlouquecendo as gatas. Articulou a boca em completo silêncio, de novo de novo de novo e, em seguida, demonstrou confusão de sentimentos pelo olhar.


Leia também: Aprendi com Mary Shelley 


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