Voo baixo
segunda-feira, setembro 05, 2011Cacá queria voar. Ganhou asas, mas tinha medo. Os desejos eram muitos, mas o medo era maior. Queria que suas asas ruflassem de par em par, mas tinha medo de cair no mar. Pensava em chegar perto do sol e perverter o uso do vôo, mas temia que a queda fosse longa demais antes que encontrasse o chão.
Era Simone quem sabia de tudo e, às vezes, até gostava da idéia. Quase muda, quis ajudar propondo um passeio sem muitos riscos: convenceu a amiga de que vôo baixo é razante. E Simone fez Cacá voar dentro de casa mesmo.
Pensou em tudo. Perigo nenhum haveria, se aquele grande pássaro desajeitado não batesse asas ao ar livre e nem se soltasse de sua mão. Simone era amiga das boas. Quando Cacá voava no limite de altura, não hesitava em puxá-la para baixo, pois não permitiria a sensação da clausura. Gritava, brigava e a ave engaiolada, depois de um pouco aborrecida, passava a entender.
Voou, voou o dia inteiro agarrada à mão de Simone, que acendeu a lâmpada quando a luz se foi. Cacá se revezava entre segura e emburrada. Mas pensava que a amiga era linda, porque, sorrindo, criava calos nas mãos só para levá-la a uma odisséia alada: ora pela cozinha ora pela sala.
Sentindo-se cansada, Cacá finalmente pensou na hipótese de que a amiga poderia também ter se exaurido. Tardia, percebeu que, em momento algum sugeriu a parada para a sesta. Preocupou-se somente em ser feliz e Simone sabia, mas nunca disse nada. Cacá olhou exausta para ela, que não estava menos abatida. Soltou-se, desceu e pôs os pés no chão. Caminhou até Simone e a abraçou pedindo desculpas tão arrependidas que desejou jamais ter ganhado asas.
Ficaram ali, na sala, abraçadas. Não se falavam com palavras. Cacá queria saber se havia provocado um abraço que não teria mais fim. Tentou se soltar – suave e discretamente – por duas vezes, mas, sem sucesso. Viveu logo em seguida o medo de ser repudiada. Ficou quietinha, aninhada no colo de Simone que, nem tinha asas.
Pessoas chegaram na sala e não fizeram muita diferença, nem comentários de estranheza. Homens e mulheres iam e vinham na minúscula casa de amigas entrelaçadas. Elas não se soltavam e Cacá pensava no que Simone pensava – talvez, simplesmente, descansasse em seu corpo.
Depois de permanecerem imóveis por um tempo não sabido, Simone se enfadou da posição. Pousou a mão direita sobre o seio esquerdo da amiga que – num salto de pensamentos – começou a ficar tensa, sem resistir ao encanto do toque. Tão suave, tão harmonioso, tão perigoso quanto os voos rejeitados no início do dia.
Consumida pela indecisão de acariciá-la também, se perguntava infeliz: “O que ela pensa?”. Quando Simone calava, Cacá quase nunca sabia o que fazer. Costumava comparar a amiga às pombas alimentadas diariamente, num parque de manhãs ensolaradas. Cativas de estação, sempre cabe a elas mostrar até onde se aproximar sem causar revoada e abandono das migalhas.
Consumida pela indecisão de acariciá-la também, se perguntava infeliz: “O que ela pensa?”. Quando Simone calava, Cacá quase nunca sabia o que fazer. Costumava comparar a amiga às pombas alimentadas diariamente, num parque de manhãs ensolaradas. Cativas de estação, sempre cabe a elas mostrar até onde se aproximar sem causar revoada e abandono das migalhas.
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