A palavra instantânea │ Consuelo Gobbi (GO)

terça-feira, setembro 24, 2013

Glenn Gould, um dos maiores pianistas do século XX, decidiu certa vez dar a sua música um novo sentido. Era a década de 70 e a gravação em estúdio havia sofrido uma revolução com o advento do audiotape. Em uma atitude inovadora, Gould disponibilizou ao público os registros fonográficos de sua obra prima, a interpretação das Variações Goldberg de Bach. A intenção era que o ouvinte, de posse de uma cópia dos originais, pudesse editar a música de acordo com o que seu ouvido achasse mais agradável ou com o que sua alma exigisse.  Não deu certo, pouca gente tinha equipamento de edição em casa. Mas impressiona a atitude de ruptura do músico, ao oferecer ao público a chance de ressignificar seu trabalho.

Mais de 40 anos depois, o que se vê no atual mundo das Artes é um confronto entre o conformismo passadista arraigado e certos movimentos isolados de ruptura estética. Em literatura, o embate tornou-se evidente. Desde o começo do século passado, quando o freudismo e o marxismo determinaram uma mudança radical das formas de escritura (vide Mallarmè, Valéry, Proust) a literatura ocidental caiu em profundo sono. O romance e a poesia encontraram seu “lugar de estar”, impregnados de uma estética desconstrutiva, do discurso fragmentado, da narração em fluxo de pensamento. Foi muito, mas foi só. Desde então, tem-se uma repetição de fórmulas, mais ou menos criativas, de escritura.

Acontece que o leitor mudou e a literatura entrou em crise. Quem lê, ouve, vê, sente não se satisfaz mais com uma posição passiva em relação à obra, ele quer reagir, quer reinterpretar, participar do processo artístico. Eis a crise do escritor que não é lido. E não é lido porque a tal “literatura moderna” não encontra mais ressonância no leitor. Textos escritos, musicados, filmados continuam sendo editados como obras “acabadas” e estanques, sólidos como hieróglifos egípcios. Impossibilitado de reagir diante da obra, ao leitor resta um prazer de consumo e ele consome o que lhe oferecem, sem filtros críticos.

Até que, então, nos deparamos com textos disparados de espaços telemáticos e simbólicos (blogs, redes sociais, aplicativos da telefonia móvel). Em multiplicação viral, percorrem milhares de milhas virtuais, chegam com uma antecedência desconcertante e nos pegam desprevenidos. Rapidamente, a “obra” – até pouco tempo uma estrutura palpável a ocupar um lugar na estante da biblioteca – reconfigura-se em “dobras”: cinema, fotografia, dança, música, body art, street art. Falo do romance literário de ficção, Sem Palavras, escrito pela jornalista Larissa Mundim e pela historiadora Valentina Prado.

À autora, unem-se dezenas de colaboradores, talentos e visões nitidamente diversas, ajuntamento tão complexo e democrático que recebe um nome que seria original, não fosse a obviedade do sentido: Coletivo Esfinge (decifra-me ou devoro-te). Identidade plural, vida dupla, acaso objetivo, geometria variável. Nessa circunstância, o texto adquire uma amplitude e uma força que não conseguimos medir. Finalmente, o monopólio da fala cai por terra, uma terra de ninguém e de todos e a palavra se liberta do velho jugo. Podemos chamar de estilo? Creio que não. O fenômeno exposto aqui não cabe em uma definição pré-estabelecida a não ser esta: literatura. Sim, porque a ficção é a matéria desta aventura.

Para quem está de fora, a visão que se tem é fragmentada, uma impressão desolada de quem perdeu o trem e vê de longe apenas a fumaça do que foi. Pois trata-se de viver a ficção no momento exato em que ela está lá, de conviver com a consciência de que não vai acontecer de novo do mesmo jeito. A ciberliteratura exige novos leitores, na certeza de que não se pode retroceder. Algo já foi rompido, para sempre.

Consuelo Gobbi é jornalista, coordenadora da PUCTV, professora da PUC-GO, mestranda em crítica literária, observadora do nosso Tempo.


Artigo publicado no jornal O Popular, em 19 de setembro de 2013.

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