Sem Palavras: 22 abr 2010 - 1h11

domingo, abril 22, 2012

Sem Palavras
de          Laura Passing <negadeneve@gmail.com>
para       Brisa Marin <lilucajuina@gmail.com>
data       22 de abril de 2010 1:11
assunto               Sem Palavras
enviado por       gmail.com

Sem Palavras

Capítulo I

Um dia te escreveria um e-mail de conteúdo profissional, meio longo, e com mensagem subliminar. Assediada há algumas semanas, você simplesmente me responderia: “Te quero”.
Se conseguisse, não te responderia, deixando uma palavra no ar para quando nos encontrássemos e eu pudesse sorrir pra você. De outra forma, simplesmente te enviaria um “Também” e ficaríamos as duas à espera de um encontro que, se dependesse de mim, seria casual. Mas para construir uma relação diferente, entraria em sua sala sem avisar.

Te pego de assalto. Respirando menos pausadamente eu seria recebida por você com um abraço de vida própria. Nós o deixaríamos valer até que ele se consumasse e precisássemos nos separar. Você faria alguma brincadeira pra descontrair e eu seria direta: quando nos vemos?
— Agora.
Pausa e sorriso de canto de boca para rapidamente pensar o que significava aquilo.
— Então vamos. Respondo.
E minha história paralisada continua quando pego em sua mão, sem preocupações. O fone toca, sobressalto e suspense. Por favor, não repasse nenhuma ligação e não permita a entrada de ninguém. Ninguém.
Em silêncio, entramos no lavabo. Suspiros contidos.
Nos entreolhamos e temos pouquíssimo tempo. Me aproximo. Sem comentários, beijo cuidadosamente seu lábio superior antes de introduzir minha língua em sua boca. As línguas se encontram, existe tensão e diálogo ali. Você me quer. O beijo funciona. Começo a me excitar. Atentas às sutilezas, nos afastamos sem palavras.

Desejo encontrar ninguém pela frente. Desço escadas rapidamente, saio do prédio e você me vê pela janela.
— Alô...
— Então... quando nos encontramos?
Silêncio.
— Assim que você puder.
Silêncio.
— Te mando um e-mail mais tarde.
— Acho perfeito! Beijo.
— Beijo.
E o restante do dia resumiu-se. Na tentativa insensata de me concentrar, só consegui reconstituir nossa cena. Não chequei minha mailbox, procurando administrar ansiedades. O beijo estava presente e me manteve sexualmente excitada ao longo do dia. Vontade de cantar canções sofridas de Tom Jobim. “Gabrieela... Gabriela-a”.

Recebi seu e-mail no começo da noite. Nele você voltava a mencionar a frase dita em uma de nossas conversas a sós – e foram tão poucas – compartilhando o desejo de “conhecer meu universo”. Na ocasião não compreendi bem a expressão e fui sincera dizendo que não havia entendido, porém sem te pedir mais explicações. Deixando rolar, apenas... Foi naquele dia que tudo começou aqui dentro. E agora eu estava aberta.

Fui encontrá-la em um café. Quis água. Você pediu um cappuccino, depois voltou atrás e cancelou. Duas águas com gás, por favor.
Conversamos atentamente, você se esforçando para não falar de trabalho e eu tentando não deixá-la falar demais. Quando eu tomava a palavra, logo sentia vontade de me calar pra te ouvir um pouco mais e te observar em suas escolhas. Aquilo me aquecia e me confortava. Quando mexi no cabelo, relaxadamente, pela terceira vez, você disse aquele “então...”.
— Aquele beijo foi muito gostoso.
Confirmei balançando a cabeça. Olhares.
— Quero mais, completei e sugeri que fôssemos embora. Ficou resolvido que daríamos uma volta. Nunca a havia visto dirigir e achei isso interessante.

Antes mesmo de movermos o carro, acariciei seus cabelos. Toquei levemente o pescoço que observava há meses e que quis beijar várias vezes. Você sorriu mostrando os caninos e, perto dali, parou embaixo de uma quaresmeira florida que exalava um perfume noturno inebriante, bem perto da mansão branca que costumei chamar de Twelve Oaks. Suas mãos estavam frias quando pousaram em minha face, antecipando um beijo quente, volumoso, lento, determinado a me engolir.

No dia seguinte, nos vemos em reunião de trabalho, me sinto leve, bonita. Tomamos um chá enquanto discutíamos a campanha em curso. Pegou em minha mão como quem introduz um novo assunto, me propondo um encontro em um lugar mais tranquilo. Aceitei na hora. Disse que me hospedaria em um hotel para aguardá-la.

Dito e feito. Às 19h45 a recepção me avisaria da chegada de Gabriela. Estávamos loucas por privacidade e, ao fechar a porta em suas costas, já nos agarramos ali mesmo, na entrada do banheiro. Dadas as boas-vindas, você me perguntou sorrindo se eu não queria entrar... As risadas eram bom sinal. Estava tudo bem, nenhuma insegurança, nenhuma culpa, apenas uma vontade grande de ampliarmos a intimidade dos carinhos.

Capítulo II

Dediquei-me ao pescoço de Gabriela longamente. Ela me acariciava os seios, mostrando-se afoita para tê-los, ainda de pé, encostadas na parede do quarto. Explorava-os no bico rijo, beijando-os deliciosamente. Eu estava pronta. Ergui sua saia e te encontrei à minha espera. Me posicionei melhor junto ao seu corpo, afastei suas pernas e senti, entre meus dedos, Gabriela se derramar. Minha língua em sua boca reproduzia o desenho que te dava prazer, te comendo devagar, te fazendo gemer um pouquinho.
Eu disse a ela o meu texto favorito para essas horas, correndo o risco de que ele não funcionasse, mas fazendo algo pra mim, consumindo a poção mágica produzida pelo suor da rã enclausurada na caixa cujo interior é revestido por espelhos.
— Quero te chupar... muito.
E ela me arrastou para a cama. Me fez conhecer como era habilidosa. Abri as pernas e ela se deitou sobre mim. Me tocou profundamente, explorando meus lugares sem parar de me beijar.
Adorei.
Pousei lentamente as mãos em suas costas e me detive no vaivém de sua bunda. Beijei pela primeira vez seus pequenos seios que pareciam ter se avolumado de tesão. Chupei um por um com firmeza, determinada a tê-los em minha boca sempre que evocasse sua lembrança. Nos deitamos de lado e ficamos curtindo descobertas, olho no olho, por tempo indeterminado.
Você era minha. 
Enfiei a língua na xoxota molhadinha. Gabriela gemeu e disse algo que não me alcançou. Demarquei o perímetro de seu clitóris, circulando por ali, sugando-o de leve e depois mais intensamente, bem gostoso, à medida que sentia seu perfume inesperado da flor de cajueiro.


Capítulo III

Sou sua.
Acordei vazia. E de olhos parados, como uma boneca de pano.
Fiquei quietinha entendendo algumas coisas. Revisitei nossa história de lá pra cá e de cá pra lá. Havia neblina em meus pensamentos. Será que perdi alguma coisa ou alguém?
O dia nasceu sem que eu ouvisse uma palavra de Gabriela. Na madrugada, o último sussurro havia soado pra mim como aramaico.
Corpos encaixados. Relevos. Estaríamos contidas uma na outra enquanto durasse aquele contato livre, misterioso e aberto, mas limitado em seu espaço e tempo. Como um segundo cristalizado.
— Angelina...
Breve suspiro responde.
Ela se vira e me abraça.
Contou sobre um sonho angustiante em que buscava formas de se comunicar em vão e que houve alívio quando me encontrou casualmente, atraída por uma canção cotidiana, tão bela quanto simples. Percebendo que ela se dedicava ao detalhamento das imagens oníricas, eu quis saber sobre as cores do sonho. Mas como June, em Henry & June, Gabriela sentiu-se subjugada e reagiu reclamando de meu exagero. Eu não esperava, mas achei tão adequado e carinhoso que me desculpei.
— Não sou perdulária, nem alcoólatra, mas falo muito e beijo muito.
Sorrimos cúmplices. E Gabriela resolveu confessar também:
— Me sinto assentada em mim mesma, de mãos dadas com você...
Nos beijamos com saudade. Havia se passado tempo demais para nossos corpos desconectados.
Eu tinha em meus braços uma mulher recorrente no imaginário de Ernst Kirchner. Um pássaro urbano que se adapta, uma mulher que se desafia em novos territórios, uma amante generosa.
Molhei lençóis contigo.

Na noite em que passamos juntas, Gabriela não quis dormir, optou pelas descobertas. No princípio, havia dito que preferia as sutilezas, mas entregou-se ao naturalismo. Me mordeu inteira, explorou minha geografia conforme anunciado. Deixou marcas na epiderme. Não me esquecerei da movimentação cheia de sensualidade, como a sua capoeira.
O contorno de seus seios ficou gravado em minha retina. Permaneci excitada por dias a fio, especialmente no trânsito. Passei horas organizando nossa trilha sonora. Listei coisas que quis fazer com você. Tudo enquanto você esteve ausente.
No passar dos dias sem te encontrar, me convenci de que sua pele contrastante com a minha e nossas outras polaridades continuariam provocando encontros e estreias fantásticas se não prestássemos atenção àquilo que se apresentava como ponderável.
Foi quando eu quis avançar. Quando percebi que a sua ausência já me afetava. Não vê-la sequer era saltar um dia para esperar a próxima manhã.
A par da armadilha, migrei para o plano racional, dei voltas e voltas estudando aquela equação sem a intenção de resolvê-la. Positivo e negativo. Positivo e positivo. Negativo e positivo. Negativo e negativo.
Permanecer exatamente onde estávamos era continuar mergulhando nas escuras águas oceânicas, possuída pela fluidez do movimento que nasce e se desenvolve intenso de dentro pra fora se projetando para ocupar um lugar novíssimo.
Meu Deus, eu queria Gabriela, queria Gabriela pra mim!

Seria preciso atenuar o desejo latente, úmido e descabido, no entanto, eu avançava sublimando a sua presença, buscando alimentar a paixão durante as situações furtivas e juvenis criadas para que pudéssemos estar juntas. Tínhamos 17 anos novamente.
A sua ausência me afetava de forma que eu a desejava imensamente e depois não! Passava o dia boicotando as emoções mais verdadeiras e correspondidas que já vivi e, à noite, fechava os olhos querendo te ter, com o coração pulsando entre as pernas. A convivência frequente e alternada com o quente e o frio trincava a minha redoma de vidro em dias transbordantes de dedicação ou de sutil rebeldia, também em frequência alternada.
Gabriela sabia de tudo e perguntava:
— Tudo bem com você?
E eu respondia:
— Normal... (Exercitando o conhecimento adquirido da literatura milenar sobre a dor e a delícia, próprias de quem compartilha a pessoa amada. Um teste constante de autoestima que se revela num misto mal-ajambrado de desprendimento, generosidade, resignação, perseverança, dor de cotovelo, fé, transcendência).
Ao saber de minhas idas e vindas do plano racional, ela se declarou surpreendida:
— Imaginei que as coisas estivessem menos tensas, mais frouxas...
Nosso diálogo fez-se naturalmente tácito (uma delícia) e o silêncio como expressão me permitiu guardar em segredo impressões acerca da miséria dos amantes. Somente disse a ela que não tinha vocação para compartilhar o amor e que pra mim não havia leveza na coadjuvância. Por isso, de forma aparentemente contraditória, decidi criar a invisibilidade de Angelina: a discrição como um dom. Um manto encantado que me protegeria, permitindo que eu protegesse Gabriela. A arma secreta que me conferia poderes para autodesintegração da matéria com autonomia para ressurgimento estratégico.

“Saudade”, contou a minha flor pelo telefone, entre um compromisso e outro. “Liguei pra dizer que te adoro...”. Era o dia que antecedia nosso encontro e iniciávamos o ritual de aquecimento. Longas preliminares nos deixavam em estado fisiológico lastimável, prontas a perder o controle na convivência com a espera. “Deus te proteja”, jurávamos uma pra outra tomando chá.
— Eu gosto de cama, da convivência na cama... beijar, abraçar, conversar. Gosto de peito e também de pau. Isso eu soube de Gabriela antes que tivéssemos experimentado muitos prazeres juntas. Excitação pura ouvi-la falar do assunto porque é sedutora sua coerência.
Quando nos encontrávamos e dávamos continuidade à narrativa dos corpos, tinha a impressão de que sua intensidade e renovado interesse pela sexualidade lhe permitiria se envolver com, pelo menos, mais uma mulher ou um homem. Até me imaginava observando do meu platô todo mundo em seus platôs e você voando de uma plataforma para a outra. Quebrava a asa nesse, quebrava a asa naquele. Voava pro outro em nome da saudade cortante. Linda você!
— Não quero outras camas, quero seus lençóis, Angelina. Sua presença me transforma. Declarou ela, interrompendo um beijo e iniciando outro com voracidade.
Me lancei num voo de gaivota. Estávamos juntas.
As mãos fortemente entrelaçadas acima de nossas cabeças e os corpos trêmulos banhados de suor gravados um no outro se afinavam. Clave de sol. Penetrei Gabriela insaciável: “Fica, fica...”, implorava. E eu não a deixaria por nada!
Minha língua escrevia a letra da canção em toda a superfície ao meu alcance. Gozou, gritou, livremente. Sem descanso, em lânguida coreografia, sentou-se sobre meus dedos, cavalgando sensualmente. Contemplei tesa a cadência da trepada, te afagando costas e bunda sem tocá-la, te amando inteira, do meu jeito. Gozou e gritou livremente.
— Me chupa agora, Flor...
Gabriela se apresentou imediatamente. Invadiu os grandes lábios para me devorar. Vasculhou, mapeou, sacou tudo.

Era bonito de ver Gabriela feliz. De minha parte também não tinha o que reclamar.
A vontade de estarmos juntas acabou por alinhar ciclos menstruais e, diariamente, uma propunha casamento à outra:
— Tomate, Red Bull e roupa lavada...
— Caso.
A lógica de casar todo dia era a de constituir compromissos matrimoniais tão breves que dificilmente cairiam no tédio e na desgraça.
Vivíamos um momento único em que eu poderia sobreviver de carinho. Recebia um telefonema matinal que fundamentava o restante do dia: “Nega, liguei pra dizer que te adoro. Toma um cafezinho comigo?”...
E era assim... Nega, Neguinha, Neguinha de Neve amava Flor de Cajueiro, Caju, Cajuína e Lilu.
Também crescia diversa a lista de canções da trilha sonora que reunia com história e harmonia Ten Thousand Maniacs, Dave Bowie, Cassia Eller, Lenine, Radiohead, Arnaldo Antunes, Joni Mitchel, R.E.M., Suzanne Vega, Tom Jobim, Nat King Cole, Marisa Monte, Calypso, Coldplay, Belô Veloso, Sinead O’Connor, Chico Buarque, Carlinhos Brown, Eurythmics, PJ Harvey, Caetano Veloso, Mart’nália, Nando Reis, Capital Inicial, Duran Duran, Secos & Molhados, Titãs, Orlando Silva, Lulu Santos, Laura Pausini, Legião Urbana, Altemar Dutra.
Nossas diferenças e semelhanças, organizadas na medida, fortaleciam laços. Por Gabriela eu quis cultivar calêndulas em clima inapropriado. E ela cortou o cabelo do jeito que pedi. Compartilhamos episódios de inadequação nas festas infantis com pula-pula, piscina de bolinhas, pimbolim, jogos eletrônicos e pasteurização. Eu cantava pra ela em todos os lugares e ela cantava só pra mim! Deitadas na grama do parque, lia ligeiro a história de Lota e Bishop, e eu supervalorizando a pontuação. Falou-me sobre o papel do Estado. Confessei-me seduzida pela palavra. Nosso sexo não tinha fim. Queríamos fugir. Disse um dia que tinha ciúmes, mas não acreditei. Contou que havia acordado de madrugada me procurando em sua cama. Separadas, eu imaginava que meu sono, frequentemente interrompido, aproximava nossos espíritos a noite inteira. Decidimos escrever um livro, ir à Festa da Chiquita e integrar o cordão do Círio de Nazaré... Me ocupei principalmente de Gabriela em minhas sessões de psicoterapia. Numa quinta, interrompeu a agenda e foi pra casa pensar na gente. Escreveu fábulas pra mim e eu fotografei a cidade pra ela. Tudo me lembrava Lilu, meu celular piava: lilu! Quando a saudade apertava, o jeito era marcar pras 22 horas um “encontro de pensamentos”. Dei a ela uma obra de arte no aniversário, a orgia de um astronauta e duas mulheres. Ganhei a lua minguante no céu estrelado, uma árvore de arquitetura particular, um cajueiro do cerrado. Prometeu tocar o cello pra mim. Comovida, garanti que, mesmo ordinariamente, voltaria a executar Jesus Alegria dos Homens no piano. Bach era meu projeto de longo prazo com você. Mais explícita, Gabriela me disse uma vez que pensou sobre envelhecer e queria que eu estivesse junto dela. As coisas haviam mudado entre nós.

Descobri que nossa história é resultado de fracassos originais. Para mim você surgiu de uma operação kamikaze malsucedida. Quando tudo deu errado no meu ritual de automutilação semestral, você estava do meu lado. E permaneceria pelo tempo que durasse, mas foi ficando. Quando deu por si, tinha desistido de mais um romance. Quis casar-se todos os dias. Agora eu adormeço te desejando coisas boas e você acorda me fazendo carinhos.
— Tudo seu. Sou tão sua que às vezes fico por entender...
— Ai meu Deus, o que eu faço com isso, hein?
— Parece que tudo meu existe pra você.
— Faz assim não, meu bem. Fico sentindo uma coisa aqui... Tum-tum-tum-tum e essa coisa.
— Coisa boa? Pode sentir. Sentir com força, por inteiro. Sente meu amor?
— Sim, eu sinto! E percebo que meu coração está batendo diferente... será possível?
Pausa e sorriso largo:
— Ele bate binário por você.

Angelina entendeu rapidamente porque a Gestalt não era apenas uma abordagem psicoterapêutica. Dar ouvido à voz dos sentimentos era algo inédito, era como exercitar empatia com Kaspar Hauser.
De poros abertos e coração tranquilo, ela convivia em paz com a intensidade das coisas que lhe atravessavam o peito e o caminho. Mas não seria negligente, mas não seria cega, mas não seria louca, pois não era possível enganar o imponderável por muito mais tempo.
Nunca fui tão feliz e tão infeliz, confessou sem se conter. Chorou copiosamente. Era um foda-se, te quero! 
Por mais inconsciente que fosse, a proposta essencial de Angelina sempre foi buscar a plenitude. E inicialmente tudo tinha algo a ver com a história da rã enclausurada na caixa internamente revestida com espelhos, mas terminava por compreender que a rã não poderia ser submetida à tortura nem mesmo para a produção de uma poção mágica – independentemente de qual seria a destinação do líquido viscoso e balsâmico.
Nos dias em que rendia dedicação especial à Gabriela, perdeu foco e força porque notou a presença de menos generosidade e mais dor de cotovelo. Um jogo instalado não a agradava nem a estimulava, sua batalha pessoal já era suficiente.
Ensaiou a renúncia.
Optou pela construção do fim.
Havia descoberto o Amor e não queria viver mais sem ele.

Conforme planejado, Gabriela e Angelina viajaram pelo mundo. Elas começaram pelo Rio de Janeiro, onde assistiram de Ipanema o sol se pôr atrás dos Dois Irmãos. Enredadas em Curitiba, cuidaram uma da outra. Estiveram em um bar para garotas apenas, em São Paulo, e se beijaram apaixonadas. Fecharam ciclo na Espanha. Angelina sempre admirou pessoas capazes de fechar ciclos com maestria.

Capítulo IV

A figura ideal encontrei num giro de meia circunferência. Um triângulo pontiagudo, agudo, estilizado. Cheio de nuances de sombras, era uma figura vermelha de três lados que abrigava uma outra figura bem no encontro de retas traçadas rigorosamente do centro dos vértices dos três ângulos.
No meio, era um tipo misterioso de flor que nunca ninguém viu. Parecia ainda uma borboleta metamorfoseada que bateria asas dali se eu tracejasse até mesmo 10 graus. Mas qualquer movimento seria impossível, hipnotizada pelo grande olho verde berilo que, formado na divisa dos espelhos, surgia dentro da flor de três pétalas – um gineceu. Azul, amarelo e transparente eram as minipétalas que pintavam cada pétala. Ao fundo, pingos lilases dançavam catatônicos espalhados no branco, desvanecidos da energia das suas cores originárias. Completando o cenário havia outras formas próprias da junção com os espelhos laterais, também avermelhadas, que só não eram quadradas porque curvavam-se ao encontro da figura protagonista. Seriam quadradas, não fossem devotadas.

Me canso e afasto o caleidoscópio. Volto a observar o quarto à procura de sinais. É uma daquelas segundas-feiras em que aguardo respostas e, dementemente, acredito que elas possam estar aqui e ali acenando pra mim. Resolvi não trabalhar hoje. Lá fora os quadros do dia se movem, imperceptivelmente, apenas a cada milésimo de segundo e, na pressa que tenho, prefiro o caleidoscópio girando para combinar soluções urgentíssimas de mistérios para mim. Prefiro retomar a busca entre as paisagens mais efêmeras.
Giro o caleidoscópio com fúria, as pedrinhas coloridas fogem de meu campo de visão e já não me ligo aos detalhes. Continuo construindo e destruindo, construindo e destruindo, construindo e destruindo universos cromáticos, agora sem muita dedicação. Juro que esperarei somente mais trinta segundos por um sinal. Minha promessa não oferece ameaças, o tempo acaba e nada providencio. Lamento então ter perdido a figura ideal.
Um rompante final de expectativa me instiga a procurar novamente aquela imagem deixada para trás nas voltas do caleidoscópio, num presságio inútil de reencontro com o amor consumado. Aceito o desafio das centenas de milhares de combinações e não duvido de que consiga recuperá-la, inclusive nas cores originais. Dispenso quaisquer condições que venham facilitar minha incumbência e bálsamos que possam distrair meu sacrifício. Espero apenas não injustiçá-la no momento em que se apresentar perto demais de meus olhos.
Mas pra quê?

Sei que nosso encontro está marcado, só não se sabe quando nem onde. Pode acontecer nos próximos dias, na travessia de uma rua, num desses fins de tarde. Ou nos próximos sete anos quando, despercebidas, teríamos dado trégua a nossos digladios num país distante, sensibilizadas por São Sebastião crivado. É para estar preparada que procuro sinais.
Agora as formas no caleidoscópio já se alternam mais belas – cada vez mais – e esqueço-me do combinado entre eu e mim. Admito que possa até ter deixado passar a imagem da figura que abriga a flor que abriga a borboleta que abriga o grande olho. As novas belezas são variadas e interessantes. Este é o sinal! Se os amantes haverão de se encontrar, é certo que não será hoje.


22 de abril de 2010.

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